quarta-feira, 11 de novembro de 2009

Carta a Andréa Azulay - Clarice Lispector


Rio, 7 de julho de 1974


Andréa de Azulay, que é minha filha espiritual:


Você sabe muita coisa, minha colega. Mas de qualquer jeito vou lhe dar umas dicas para a vida e outras para escrever.

Sugestões de vida:

- Você sabe se espreguiçar? É tão bom. Quando você se sentir cansadinha (você nunca se cansa porque é uma borboleta alegre) ou quando quiser sentir uma coisa boa para o seu corpinho, então espreguice-se. É assim: espiche os braços e as pernas ao último máximo, tanto quanto puder. Fique assim um momento. Em seguida largue-se de repente, relaxe o corpo como se este fosse um trapo. Você vai ver como é gostoso. A gente ganha um corpo novo.

- Você gosta de comer coisa boa? Então experimente fios de ovos com creme de leite Nestlé. A gente não tem vontade de acabar nunca.

- Pergunte a seu pai e a sua mãe se eles deixam o seguinte: esquente uma colher de sobremesa de vinho tinto, esquente uma xícara de café com açúcar, misture tudo e beba devagarzinho. Dá um gosto bom no coração.

- Experimente mocotó. Demora a cozinhar e leva tempero. Mande fazer um pirão com o caldo. É forte, é potente, dá força humana. É capaz de você odiar!!!!!!

Sugestões para escrever:

- Você não precisa de nada, já sabe quase tudo. Mas vou lhe dar algumas idéias:

- Não descuide da pontuação. Pontuação é a respiração da frase. Uma vírgula pode cortar o fôlego. É melhor não abusar de vírgulas. O ponto de interrogação e o de exclamação use-os quando precisar: são válidos. Cuidado com reticências: só as empregue em caso raro. Como depois de um suspiro. Quanto ao ponto e vírgula, ele é um osso atravessado na garganta da frase. Uma minha amiga, com quem falei a respeito da pontuação, acrescentou que ponto e vírgula é o soluço da frase. O travessão é muito bom para a gente se apoiar nele. Agora esqueça tudo o que eu disse.

- Cuidado com o "que", muitos ques numa mesma frase atropela a gente. Você pode tomar a liberdade que eu já tomei, isto é: começar uma frase com "que". Mas esse meu recurso já foi por demais imitado, eu já não uso mais, só às vezes.

Quando você fizer sucesso fique contentinha mas não contentona. É preciso ter sempre uma simples humildade tanto na vida quanto na literatura.

Afago os seus belos cabelos.


Clarice



Quer me mandar o seu retrato?

(Esta carta foi escrita antes de você me mandar o seu retrato)

sábado, 7 de novembro de 2009

Carta à Andréa Azulay - Clarice Lispector


Rio, 27 de junho de 1974



À bela princesa Andréa de Azulay,



dou-lhe de presente este objeto.Espero que você goste dele. Seu nome é móbile. Mas eu lhe dei sete nomes. O primeiro: la donna é mobile qual piuma ao vento (a mulher é volúvel como pluma ao vento). O segundo nome é: vertigem. O terceiro é: ano 2000. O quarto é: sussurros delicadíssimos. O quinto é: suspiros. O sexto é: pássaro azul. O sétimo é: Andréa de Azulay.

Quero lhe dizer, minha querida coleguinha, que a mais bela música do mundo é o silêncio interestrelar. E me desculpe: não posso ficar sozinha contigo porque senão nasce uma estrela no ar.

Você precisa saber que já é uma escritora. Mas nem ligue, faça de conta que nem é. Eu lhe desejo que você seja conhecida e admirada só por um grupo delicado embora grande de pessoas espalhadas pelo mundo. Desejo-lhe que nunca atinja a cruel popularidade porque esta é ruim e invade a intimidade sagrada do coração da gente. Escreva sobre ovo que dá certo. Dá certo também escrever sobre estrela. E sobre a quentura que os bichos dão a gente. Cerque-se da proteção divina e humana, tenha sempre pai e mãe - escreva o que quiser sem ligar para ninguém. Você me entendeu?

Um beijo nas suas mãos de princesa.



Clarice

Dois modos - Clarice Lispector

Como se eu procurasse não aproveitar a vida imediatamente, mas só a mais profunda, o que me dá dois modos de ser: em vida, observo muito, sou"ativa" nas observações, tenho o senso do ridículo, do bom humor, da ironia, e tomo um partido. Escrevendo, tenho observações "passivas", tão interiores que "se escrevem" ao mesmo tempo em que são sentidas quase sem o que se chama de processo. É por isso que no escrever eu não escolho, não posso me multiplicar em mil, me sinto fatal a despeito de mim.

Canção - Cecília Meireles


Ó flores do verde pino,

sempre é tempo de esperar!

Mas nós temos a certeza

de que aquilo que esperamos

não se acha em nenhum lugar...


Não tem raízes nem ramos,

não é do céu nem do mar.

Não tem nome - é só destino.

E é toda a nossa estranheza,

sabendo-o tanto , esperar...

Canção de Outono - Cecília Meireles


Perdoa-me, folha seca,

não posso cuidar de ti.

Vim para amar neste mundo,

e até do amor me perdi.

De que serviu tecer flores

pelas areias do chão,

se havia gente dormindo

sobre o próprio coração?


E não pude levantá-la!

Choro pelo que não fiz.

E pela minha fraqueza

é que sou triste e infeliz.

Perdoa-me, folha seca!

Meus olhos sem força estão

velando e rogando àqueles

que não se levantarão...


Tu és a folha de outono

voante pelo jardim.

Deixo-te a minha saudade

- a melhor parte de mim.

E vou por este caminho,

certa de que tudo é vão.

Que tudo é menos que o vento,

menos que as folhas do chão...

Questão Pessoal - Ferreira Gullar


Não interessa

a ninguém

(talvez)

isso

de que já falei

que o poema se nega

a ser poema.


Não interessa

talvez

porque se a poesia

é universal

o poema é

uma questão pessoal

(de mim comigo

de voz comigo

de voz

que não quer voar

não quer

saltar

acima

do rio escuro,

prateada!)

essa palavra avesso esse

verso

espesso mais que pelo

essa pele-

palavra

que envolve a voz

e voa ao revés

tão rente a meu corpo

feito um sopro-

o poema

que em si mesmo se solve

(em seu mel).

Lapa de Bandeira - (quinta -rima) - Vinícius de Moraes

Existia, e ainda existe
Um certo beco na Lapa
Onde assistia, não assiste
Um poeta no fundo triste
No alto de um apartamento
Como no alto de uma escarpa.

Em dias de minha vida
Em que me levava o vento
Como uma nave ferida
No cimo da escarpa erguida
Eu via uma luz discreta
Acender serenamente.

Era a ilha da amizade
Era o espírito do poeta
A buscar pela cidade
Minha louca mocidade
Como uma nave ferida
Perambulando patética.

E eu ia e ascensionava
A grande espiral erguida
Onde o poeta me aguardava
E onde tudo me guardava
Contra a angústia do vazio
Que embaixo me consumia.

Um simples apartamento
Num pobre beco sombrio
Na Lapa, junto ao convento...
Porém, no meu pensamento
Era o farol da poesia
Brilhando serenamente.

quarta-feira, 4 de novembro de 2009

Há um nome que nos estremece - Cecília Meireles

Há um nome que nos estremece

como quando se corta a flor

e a árvore se torce e padece



Há um nome que alguém pronuncia

sem qualquer alegria ou dor,

e que, em nós, é dor e alegria.



Um nome que brilha e que passa,

que nos corta em puro esplendor,

que nos deixa em cinza e desgraça.



Nele se acaba a nossa vida,

porque é o nome total do amor

em forma obscura e dolorida.



Há um nome levado no vento.

Palavra.Pequeno rumor

entre a eternidade e o momento.

trecho de "Os Sertões" - Euclides da Cunha

...O vaqueiro criou-se em uma intermitência, raro perturbada, de horas felizes e horas cruéis, de abastança e misérias - tendo sobre a cabeça, como ameaça perene, o sol, arrastando de envolta no volver das estações, períodos sucessivos de devastações e desgraças.
Atravessou a mocidade numa intercadência de catástrofes.
Fez-se homem, quase sem ter sido criança.
Salteou-o, logo, intercalando-lhe agruras nas horas festivas da infância, o espantalho das secas no sertão.Cedo encarou a existência pela sua face tormentosa. É um condenado à vida.
Compreendeu-se envolvido em combate sem tréguas exigindo-lhe imperiosamente a convergência de todas as energias.

Fez-se forte, esperto, resignado e prático.
Aprestou-se, cedo, para a luta.

O seu aspecto recorda, vagamente, à primeira vista, o de guerreiro antigo exausto da refrega.
As vestes são uma armadura.
Envolto no gibão de couro curtido, de bode ou de vaqueta; apertado no colete também de couro;calçando as perneiras, de couro curtido ainda, muito justas, cosidas às pernas e subindo até as virilhas, articuladas em joelheiras de sola; e resguardados os pés e as mãos pelas luvas e guarda-pés de pele de veado - é como a forma grosseira de um campeador medieval desgarrado em nosso tempo...

...Reflete, nestas aparências que se contrabatem, a própria natureza que o rodeia - passiva ante o jogo dos elementos e passando, sem transição sensível, de uma estação à outra, da maior exuberância à penúria dos desertos incendidos, sob o reverberar dos estios abrasantes.
É inconstante como ela
É natural que o seja.
Viver é adaptar-se.
Ela o talhou à sua imagem: bárbaro, impetuoso, abrupto...

Narciso e Narciso - Ferreira Gullar

Se Narciso se encontra com Narciso

e um deles finge

que ao outro admira

(para sentir-se admirado),

o outro

pela mesma razão finge também

e ambos acreditam na mentira.



Para Narciso

o olhar do outro, a voz

do outro, o corpo

é sempre o espelho

em que ele a própria imagem mira.

E se o outro é

como ele

outro Narciso,

é espelho contra espelho:

o olhar que mira

reflete o que o admira

num jogo multiplicado em que a mentira

de Narciso a Narciso

inventa o paraíso

E se amam mentindo

no fingimento que é necessidade

e assim

mais verdadeiro que a verdade.



Mas exige, o amor fingido,

ser sincero

o amor que como ele

é fingimento.

e fingem mais

os dois

com o mesmo esmero

com mais e mais cuidado

- e a mentira se torna desespero.

Assim amam-se agora

se odiando.



O espelho

embaciado,

já Narciso em Narciso não se mira:

se torturam

se ferem

não se largam

que o inferno de Narciso

é ver que o admiravam de mentira.

domingo, 1 de novembro de 2009

Canção da tarde no campo - Cecília Meireles


Caminho no campo verde,

estrada depois de estrada.

Cercas de flores, palmeiras,

serra azul, água calada.


Eu ando sozinha

no meio do vale.

Mas a tarde é minha.


Meus pés vão pisando a terra

que é a imagem da minha vida:

tão vazia, mas tão bela,

tão certa, mas tão perdida!


Eu ando sozinha

por cima de pedras.

Mas a flor é minha.


Os meus passos no caminho

são como os passos da lua:

vou chegando,vais fugindo,

minha alma é a sombra da tua.


Eu ando sozinha

por dentro de bosques.

Mas a fonte é minha.


De tanto olhar para longe,

não vejo o que passa perto.

Subo monte, desço monte,

meu peito é puro deserto.


Eu ando sozinha,

ao longo da noite.

Mas a estrela é minha.

Aprendizado - Ferreira Gullar


Do mesmo modo que te abriste à alegria

abre-te agora ao sofrimento

que é fruto dela

e seu avesso ardente.


Do mesmo modo

que da alegria foste

ao fundo

e te perdeste nela

e te achaste

nessa perda

deixa que a dor se exerça agora

sem mentiras

nem desculpas

e em tua carne vaporize

toda ilusão


que a vida só consome

o que a alimenta.

Aprendizado - Ferreira Gullar

Canção Suspirada - Cecília Meireles


Por que desejar libertar-me,

se é tão bom não ver o teu rosto,

se ando em meu sonho como, num rio,

alguém que é feliz e está morto?


Por que pensar em qualquer coisa,

se tudo está sobre a minha alma:

vento, flores, águas, estrelas,

e músicas de noite e albas?


Nos céus em sombra há fontes mansas

que em silêncio e esquecida bebo.

Flui o destino em minha boca

e a eternidade entre os meus dedos...


Por que fazer o menor gesto,

se nada sei, se nada sofro,

se estou perdida em mim, tão perdida

como o som da voz no seu sopro?

Pintura - Ferreira Gullar

Eu sei que se tocasse
com as mãos aquele canto do quadro
onde um amarelo arde
me queimaria nele
ou teria manchado para sempre de delírio
a ponta dos dedos.

Olhar - Ferreira Gullar


O que eu vejo

me atravessa

como ao ar

a ave


o que eu vejo passa

através de mim

quase fica

atrás de mim


O que eu vejo

- a montanha por exemplo

banhada de sol -

me ocupa

e sou então apenas

essa rude pedra iluminada

ou quase

se não fora

saber que a vejo.

Cantiga - Cecília Meireles


Bem-te-vi que estás cantando


nos ramos da madrugada,


por muito que tenhas visto,


juro que não viste nada.




Não viste as ondas que vinham


tão desmanchadas na areia,


quase vida, quase morte,


quase corpo de sereia...




E as nuvens que vão andando


com marcha e atitude de homem,


com a mesma atitude e marcha


tanto chegam como somem.




Não viste as letras que apostam


formar idéias com o vento...


E as mãos da noite quebrando


os talos do pensamento.




Passarinho tolo, tolo,


de olhinhos arregalados...


Bem-te-vi, que nunca viste


como os meus olhos fechados...

Onda - Cecília Meireles


Quem falou de primavera

sem ter visto o teu sorriso,

falou sem saber o que era.



Pus o meu lábio indeciso

na concha verde e espumosa

modelada ao vento liso:


tinha frescuras de rosa,

aroma de viagem clara

e um som de prata gloriosa.


Mas desfez-se em coisa rara:

pérolas de sal tão finas

- nem a areia as igualara!


Tenho no meu lábio as ruínas

de arquiteturas de espuma

com paredes cristalinas...


Voltei aos campos de bruma,

onde as árvores perdidas

não prometem sombra alguma.


As coisas acontecidas,

mesmo longe, ficam perto

para sempre e em muitas vidas:


mas quem falou de deserto

sem nunca ver os meus olhos...

- falou, mas não estava certo.