segunda-feira, 28 de novembro de 2011

Acontece em Deus - Fernando Pessoa

Entre mim e a vida há uma ponte partida
Só os meus sonhos passam por ela...
Às vezes na aragem vêm de outra margem
Aromas a uma realidade bela;

Mas só sonhando atravesso o brando
Rio e me encontro a viver e a crer...
Se olho bem, vejo - pobre do desejo! -
Partida a ponte para Viver.

E então memoro num choro
Uma vida antiga que nunca tive
Em que era inteira a ponte inteira
E eu podia ir para onde se vive

E então me invade uma saudade
Dum misterioso passado meu
Em que houvesse tido um outro sentido
Que me falta pra ser, não sei como, eu.



Pessoa, Fernando, 1888-1935.
Poesia, 1902-1917/ Fernando Pessoa; edição Manuela Parreira da Silva, Ana Maria Freitas e Madalena Dine. - São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

Onde estão os momentos que vivi?

Onde estão os momentos que vivi?
Onde estão as ideias que esqueci?
Talvez existam nalgum paraíso
Delicioso de vago e de preciso,
E ali me esperem para me dizer
Que foi melhor que houvesse de as perder,
Porque assim à grandeza de chorá-las
Junto a beleza d'alma de ancontrá-las
Já quando do dizê-las a ânsia fútil
As não tornara cada uma inútil...
E esta ideia me faz menos triste
Mas esse paraíso acaso existe?


Pessoa, Fernando, 1888-1935.
Poesia, 1902-1917/ Fernando Pessoa, edição Manuela Parreira da Silva, Ana Maria Freitas, Madalena Dine. - São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

domingo, 27 de novembro de 2011

Poemas inconjuntos [ 283 ] - Fernando Pessoa

O Universo não é uma ideia minha.
A minha ideia do Universo é que é uma ideia minha.
A noite não anoitece pelos meus olhos,
A minha ideia da noite é que anoitece por meus olhos.
Fora de eu pensar e de haver quaisquer pensamentos
A noite anoitece concretamente
E o fulgor das estrelas existe como se tivesse peso.



Pessoa, Fernando. Ficções de interlúdio( Poemas completos de Alberto Caeiro: "Poemas inconjuntos"). In. Obra poética. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1996.

Dizem? - Fernando Pessoa

Dizem?
Esquecem.

Não dizem?
Disseram.

Fazem?
Fatal.
Não fazem?
Igual.

Por que
esperar?
- Tudo é
sonhar.



Pessoa, Fernando. "Cancioneiro". In: Obra poética. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1986.
Postado Em "Acontecimentos" por Antonio Cícero.

Pobre velha música! - Fernando Pessoa

Pobre velha música!
Não sei por que agrado
Enche-se de lágrimas
Meu olhar parado.

Recordo outro ouvir-te.
Não sei se te ouvi
Nessa minha infância
Que me lembra em ti.

Com que ânsia tão raiva
Quero aquele outrora!
E eu era feliz? Não sei:
Fui-o outrora agora.



Pessoa, Fernando. "Cancioneiro".In: Obra poética. Rio de Janeiro: Nova Aguilar,1986.
Postado em "Acontecimentos" de Antonio Cícero.

quarta-feira, 23 de novembro de 2011

Gorjeios - Manoel de Barros

Gorjeio é mais bonito do que canto porque nele se inclui a sedução.
É quando a pássara está enamorada que ela gorjeia.
Ela se enfeita e bota novos meneios na voz.
Seria como perfumar-se a moça para ver o namorado.
É por isso que as árvores ficam loucas se estão gorjeadas.
É por isso que as árvores deliram.
Sob o efeito da sedução da pássara as árvores deliram.
E se orgulham de terem sido escolhidas para o concerto.
As flores dessas árvores depois nascerão mais perfumadas.



Barros, Manoel de, 1916-
Poesia completa/ Manoel de Barros.- São Paulo: Leya, 2010.

Desejar ser 2 - Manoel de Barros

Prefiro as linhas tortas, como Deus. Em menino eu sonhava de ter uma perna mas curta. ( Só pra poder andar torto). Eu via o velho farmacêutico de tarde, a subir a ladeira do beco, torto e deserto... toc ploc toc ploc. Ele era um destaque.
Se eu tivesse uma perna mais curta, todo mundo haveria de olhar para mim: lá vai o menino torto subindo a ladeira do beco toc ploc toc ploc.
Eu seria um destaque. A própria sagração do Eu.



Barros, Manoel de, 1916
Poesia completa/ Manoel de Barros - São Paulo: Leya,2010.

segunda-feira, 21 de novembro de 2011

Soneto - José Albano

Poeta fui e do áspero destino
Senti bem cedo a mão pesada e dura.
Conheci mais tristeza que ventura
E sempre andei errante e peregrino.

Vivi sujeito ao doce desatino
Que tanto engana, mas tão pouco dura;
E ainda choro o rigor da sorte escura,
Se nas dores passadas imagino.

Porém, como me agora vejo isento
Dos sonhos que sonhava noite e dia,
E só com saudades me atormento;

Entendo que não tive outra alegria
Nem nunca outro qualquer contentamento
Senão de ter cantado o que sofria.



Albano, José. "Soneto". In: Campos, Paulo Mendes. Forma e expressão do soneto. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Cultura, 1952.

Postado por Antonio Cícero em Acontecimentos.

sexta-feira, 18 de novembro de 2011

A experiência, a possibilidade de que algo nos aconteça ou nos toque - Jorge Larrosa Bondía

A experiência, a possibilidade de que algo nos aconteça ou nos toque, requer um gesto de interrupção, um gesto que é quase impossível nos tempos que correm: requer parar para pensar, parar para olhar, parar para escutar, pensar mais devagar, olhar mais devagar, e escutar mais devagar; parar para sentir, sentir mais devagar, demorar-se nos detalhes, suspender a opinião, suspender o juízo, suspender a vontade, suspender o automatismo da ação, cultivar a atenção e a delicadeza, abrir os olhos e os ouvidos, falar sobre o que nos acontece, aprender a lentidão, escutar aos outros, cultivar a arte do encontro, calar muito, ter paciência e dar-se tempo e espaço.





Notas sobre a experiência e o saber de experiência - Jorge Larrosa Bondía - Conferência proferida no I Seminário Internacional de Educação de Campinas , traduzida e publicada em julho de 2001, Leituras SME.

Espécie de canção - William Carlos Williams

Deixar a cobra espreitar sob
a erva
e a escrita
ser palavras, lentas e rápidas, afiadas
ao golpear, quietas ao aguardar,
insones.

- pela metáfora reconciliar
pessoas e pedras.
Compor. (Nenhuma ideia
senão nas coisas.) Inventar!
Saxifraga é minha flor que cinde
rochas.




Williams, William carlos. "The Wedge". In:_____. The collected poems of William Carlos Williams. Vol.2. New York: New Directions,1986.

Postado por Antonio Cícero em Acontecimentos.

Solidão - Juan Ramón Jiménez

Em ti estás todo, mar, e contudo
como estás sem ti, e só,
e longe, sempre, de ti mesmo!

Aberto em mil feridas, cada instante,
qual minha fronte,
tuas ondas vão, como meus pensamentos,
e vêm, vão e vêm,
beijando-se, separando-se,
num eterno conhecer-se,
mar, e desconhecer-se,

És tu e não o sabes,
teu coração te bate e não o sente...
Que plenitude de solidão, mar só!




Jiménez, Juan Ramón. "Soledad". In: Rico, Francisco(org.). Mil años de poesia española. Antologia comentada. Barcelona: Planeta, 1996.

terça-feira, 15 de novembro de 2011

Noite adentro - Caio Dezorzi

Quero te dormir
Ver-te em sono
Noite adentro.

Quero imiscuir
No teu sonho
Vida afora.

Fundo da Gaveta - blog do Caio Dezorzi: Comunicado

Fundo da Gaveta - blog do Caio Dezorzi: Comunicado: Fui acometido por uma forte dor no peito hoje. Ao chegar ao pronto-socorro fui internado imediatamente. Toda a junta médica disse que o que ...

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Semeaduras: Nada Adiantaria Fazer (Se Tentasse)

Semeaduras: Nada Adiantaria Fazer (Se Tentasse): Nunca aprendera a existir. Não tivera forças nunca para esse enfrentamento. Quando jovem costumava pensar sobre a vida que não havia ainda p...

terça-feira, 1 de novembro de 2011

Quando eu tiver setenta anos - Paulo Leminski

quando eu tiver setenta anos
então vai acabar esta adolescência

vou largar esta vida louca
e terminar minha livre-docência

vou fazer o que meu pai quer
começar a vida com passo perfeito

vou fazer o que minha mãe deseja
aproveitar as oportunidades
de virar um pilar da sociedade
e terminar meu curso de direito

então ver tudo em sã consciência
quando acabar esta adolescência.



A lua no cinema e outros poemas/ organização Eucanaã Ferraz. - São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

Maresia - Antonio Cicero

O meu amor me deixou
levou minha identidade
não sei mais bem onde estou
nem onde a realidade.

Ah, se eu fosse marinheiro
era eu quem tinha partido
mas meu coração ligeiro
não se teria partido

ou se partisse colava
com cola de maresia
eu amava e desamava
sem peso e com poesia.

Ah, se eu fosse marinheiro
seria doce meu lar
não só o Rio de Janeiro
a imensidão e o mar

leste oeste norte sul
onde um homem se situa
quando o Sol sobre o azul
ou quando no mar a Lua

Não buscaria conforto
nem juntaria dinheiro
um amor em cada porto
Ah, se eu fosse marinheiro.



A lua no cinema e outros poemas/organização Eucanaã Ferraz. - São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

As pedras são muito mais lentas - Arnaldo Antunes

As pedras são muito mais lentas do que os animais. As plantas exalam mais cheiro quando a chuva cai. As andorinhas quando chega o inverno voam até o verão. Os pombos gostam de milho e de migalhas de pão. As chuvas vêm da água que o sol evapora. Os homens quando vêm de longe trazem malas. Os peixes quando nadam juntos formam um cardume. As larvas viram borboletas dentro dos casulos. Os dedos dos pés evitam que se caia. Os sábios ficam em silêncio quando os outros falam. As máquinas de fazer nada não estão quebradas. Os rabos dos macacos servem como braços. Os rabos dos cachorros servem como riso. As vacas comem duas vezes a mesma comida. As páginas foram escritas para serem lidas. As árvores podem viver mais tempo que as pessoas. Os elefantes e golfinhos têm boa memória. Palavras podem ser usadas de muitas maneiras. Os fósforos só podem ser usados uma vez. Os vidros quando estão bem limpos quase não se vê. Chicletes são para mastigar mas não para engolir. Os dromedários têm uma corcova e os camelos duas. As meia-noites duram menos do que os meio-dias. As tartarugas nascem em ovos mas não são aves. As baleias vivem na água mas não são peixes. Os dentes quando a gente escova ficam brancos. Cabelos quando ficam velhos ficam brancos. As músicas dos índios fazem cair a chuva. Os corpos dos mortos enterrados adubam a terra. Os carros fazem muitas curvas pra subir a serra. Crianças gostam de fazer perguntas sobre tudo. Nem todas as respostas cabem num adulto.



A lua no cinema e outros poemas/organização Eucanaã Ferraz. - São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

Uma voz - Ferreira Gullar

Sua voz quando ela canta
me lembra um pássaro mas
não um pássaro cantando:
lembra um pássaro voando



A lua no cinema e outros poemas/Organização Eucanaã Ferraz. - São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

Falar com coisas - João Cabral de Melo Neto

As coisas, por detrás de nós,
exigem: falemos com elas,
mesmo quando nosso discurso
não consiga ser falar delas.
Dizem: falar sem coisas é
comprar o que seja sem moeda:
é sem fundos, falar com cheques,
em líquida, informe diarréia.



a lua no cinema e outros poemas/organização Eucanaã Ferraz. - São Paulo: Companhia das Letras,2011.