sábado, 29 de dezembro de 2012

Toda a ciência está aqui - Eugenio de Andrade

Toda a ciência está aqui,
na maneira como esta mulher
dos arredores de Cantão
ou dos campos de Alpedrinha,
rega quatro ou cinco leiras
de couves: mão certeira
com a água,
intimidade com a terra,
empenho do coração.
Assim se faz o poema.


Andrade, Eugênio de. Rente ao dizer. Fundação Eugênio de Andrade, 1992.

Ao fim da tarde - Eugenio de Andrade

Ninguém esperava ver o mar naquele dia
mas era o mar
que estava alí à porta naqueles olhos.


Andrade, Eugenio de. Poemas de Eugenio de Andrade. Org. por Arnaldo Saraiva. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.

Ofício - Gastão Cruz

Os poemas que não fiz não os fiz porque estava
dando ao meu corpo aquela espécie de alma
que não pode a poesia nunca dar-lhe.

Os poemas que fiz só os fiz porque estava
pedindo ao corpo aquela espécie de alma
que somente a poesia pode dar-lhe.

Assim devolve o corpo a poesia
que se confunde com o duro sopro
de quem está vivo e ás vezes não respira.

Cruz, Gastão. "As palavras e as coisas". In:____. Escarpas. Lisboa: Assírio e Alvim, 2010.

Por mais duro que pareça - Silva, Luis Roberto Nascimento

Por mais duro que pareça agora
isso tudo passará.
A tempestade irá embora.

As nuvens pesadas se dissiparão.
Poderemos olhar o céu,
sol poente; novamente.

Guardaremos a lição:
para cada azul cintilante
brilhando sob nossas cabeças

existe igual noite de trevas
mosaico invertido
grafite da escuridão.


Silva, Luis Roberto Nascimento. O alfabeto da devassa. Rio de Janeiro: Rocco, 2005.

quinta-feira, 13 de dezembro de 2012

Eu tenho um ermo - Manoel de Barros

Eu tenho um ermo bem dentro do olho. Por motivo do ermo não fui um menino peralta. Agora tenho saudade do que não fui. Acho que o que faço agora é o que não pude fazer na infância. Faço outro tipo de peraltagem. Quando era criança eu deveria pular muro para catar goiaba. Mas não havia vizinho. Em vez de peraltagem eu fazia solidão. Brincava de fingir que pedra era lagarto. Que lata era navio. Que sabugo era um serzinho mal resolvido e igual a um filhote de gafanhoto. Cresci brincando no chão, entre formigas. De uma infância livre e sem comparamentos. Eu tinha mais comunhão com as coisas do que comparação. Porque se a gente fala a partir de ser criança, a gente faz comunhão: de um orvalho e sua aranha, de uma tarde e suas garças, de um pássaro e sua árvore. Então eu trago das minhas raízes crianceiras a visão comungante e oblíqua das coisas. Eu sei dizer sem pudor que o escuro me ilumina. É um paradoxo que ajuda a poesia e que eu falo sem pudor. Eu tenho que essa visão oblíqua vem de eu ter sido criança em algum lugar perdido onde havia transfusão da natureza e comunhão com ela. Era o menino e os bichinhos. Era o menino e o sol. O menino e o rio. Era o menino e as árvores.


Barros, Manoel de, 1916-
Menino do mato / Manoel de Barros.- São Paulo: Leya, 2010.

domingo, 25 de novembro de 2012

Cantiga - Cecília Meireles

Nós somos como perfume
da flor que não tinha vindo:
esperança do silêncio,
quando o mundo está dormindo.

Pareceu que ouve o perfume...
E a flor sem vir , se acabou.
Oh! abelha imaginativa!
o que o desejo inventou...



Meireles, Cecília , 1901-1964
As palavras voam/antologia poética de Cecília Meireles; organizador Bartolomeu Campos de Queirós. - 1ª ed.- São Paulo: Moderna, 2005.-

Canção - Cecília Meireles

Se não chover nem ventar,
se a lua e o sol foram limpos
e houver festa pelo mar
- ir-te-ei visitar.

Se o chão se cobrir de flor,
e o endereço estiver claro,
e o mundo livre de dor
- ir-te ei ver, amor.

Se o tempo não tiver fim,
se a terra e o céu se encontrarem
à porta do teu jardim
- espera por mim.

Cantarei minha canção
com violas de eternamente
que são de alma e em alma estão.
- De outro modo, não.


Meireles, Cecília,1901-1964.
As palavras voam/antologia poética de Cecília Meireles; organizador Bartolomeu Campos de Queirós- 1ª ed.- São Paulo: Moderna, 2005.-

Voo - Cecília Meireles

 Alheias e nossas
as palavras voam.
Bando de borboletas multicores,
as palavras voam.
Bando azul de andorinhas,
bando de gaivotas brancas,
as palavras voam.
Voam as palavras
como águias imensas.
Como escuros morcegos
como negros abutres,
as palavras voam.

Oh! alto e baixo
em círculos e retas
acima de nós, em redor de nós
as palavras voam.

E às vezes pousam.


Meireles, Cecília, 1901-1964.
As palavras voam/antologia poética de Cecília Meireles;organizador Bartolomeu Campos de Queirós.- 1ª.ed. - São Paulo: Moderna, 2005.-

Segunda canção do beco - Manuel Bandeira

Teu corpo moreno
É da cor da praia.
Deve ter o cheiro
Da areia da praia.
Deve ter o cheiro
Que tem ao mormaço
A areia da praia.

Teu corpo moreno
Deve ter o gosto
De fruta de praia
Deve ter o travo
Deve ter a cica
Dos cajus da praia.

Não sei, não sei, mas
Uma coisa me diz
Que o teu corpo magro
Nunca foi feliz.


Traço de poeta.-1ª ed. - São Paulo: Global, 2006.- (Antologia de poesias para jovens)

Eu queria fazer parte das árvores - Manoel de Barros

Eu queria fazer parte das árvores como os
pássaros fazem.
Eu queria fazer parte do orvalho como as
pedras fazem.
Eu só não queria significar.
Porque significar limita a imaginação.
E com pouca imaginação eu naõ poderia
fazer parte de uma árvore.
Como os pássaros fazem.
Então a razão me falou: o homem não
pode fazer parte do orvalho como as pedras
fazem.
Porque o homem não se transfigura senão
pelas palavras.
E isso era mesmo.


Barros, Manoel de, 1916-
Menino do mato/Manoel de Barros.- São Paulo: Leya, 2010

quinta-feira, 22 de novembro de 2012

Ai daqueles... - Paulo Leminski

ai daqueles
que se amaram sem nenhuma briga
aqueles que deixaram
que a mágoa nova
virasse a chaga antiga

ai daqueles que se amaram
sem saber que amar é pão feito em casa
e que a pedra só não voa
porque não quer
não porque não tem asa.



Traço de poeta. - 1ª ed. - São Paulo: Global, 2006.- (Antologia de poesias para jovens)

Eu bem sabia - Manoel de Barros

Eu bem sabia que a nossa visão é um ato
poético do olhar.
Assim aquele dia eu vi a tarde desaberta
nas margens do rio.
Como um pássaro desaberto em cima de uma pedra
na beira do rio.
Depois eu quisera também que a minha palavra
fosse desaberta na margem do rio
Eu queria mesmo que as minhas palavras
fizessem parte do chão como os lagartos
fazem.
Eu queria que minhas palavras de joelhos
no chão pudessem ouvir as origens da terra.


Barros, Manoel de, 1916-
Menino do mato / Manoel de Barros. - São Paulo:
Leya, 2010.

Naquele dia - Manoel de Barros

Naquele dia eu estava um rio.
O próprio.
Achei em minhas areias uma concha.
A concha trazia clamores do rio.
Mas o que eu queria mesmo era de me
aperfeiçoar quanto um rio.
Queria que os passarinhos do lugar
escolhessem minhas margens para pousar.
e escolhessem minhas árvores para
cantar.
Eu queria aprender a harmonia dos gorjeios.


Barros, Manoel de, 1916.
Menino do mato / Manoel de Barros. - São Paulo; Leya, 2010.

Criança - Cecília Meireles

Cabecinha boa de menino triste,
de menino triste que sofre sozinho,
que sozinho sofre - e resiste.

Cabecinha boa de menino ausente,
que de sofrer tanto se fez pensativo,
e não sabe mais o que sente...

Cabecinha boa de menino mudo
que não teve nada, que não pediu nada,
pelo medo de perder tudo.

Cabecinha boa de menino santo
que do alto se inclina sobre a água do mundo
para mirar seu desencanto.

Para ver passar numa onda lenta e fria
a estrela perdida da felicidade
que soube que não possuiria.

Meireles, Cecília, 1901-1964
As palavras voam/ antologia poética de Cecília Meireles; organizador Bartolomeu Campos de Queiros-1ªed. - São Paulo: Moderna,2005. -  

domingo, 11 de novembro de 2012

Parte de entrevista de Ferreira Gullar a Revista Veja


     Já fiquei onze anos sem publicar um livro. Meu último saiu há há onze anos. Poesia não nasce pela vontade da gente, ela nasce do espanto, alguma coisa da vida que eu vejo e não sabia. Só escrevo assim. Estou na praia, lembro do meu filho que morreu. Ele via aquele mar, aquela paisagem. Hoje estou vendo por ele. Aí começo um poema... Os mortos veem o mundo pelos olhos dos vivos.
Não dá para escrever um poema sobre qualquer coisa.
     O mundo aparentemente está explicado, mas não está. Viver em um mundo sem explicação alguma ia deixar todo mundo louco. Mas nenhuma explicação explica tudo, nem poderia. Então de vez em quando o não explicado se revela e é isso que faz nascer a poesia. Só aquilo que não se sabe pode ser poesia.


                                                               Ferreira Gullar












sexta-feira, 24 de agosto de 2012

Acho que o quintal onde a gente brincou - Manoel de Barros

Acho que o quintal onde a gente brincou é maior do que a cidade. A gente só descobre isso depois de grande. A gente descobre que o tamanho das coisas há de ser medido pela intimidade que temos com as coisas. Há de ser como acontece com o amor. Assim, as pedrinhas do nosso quintal são sempre maiores do que as outras pedras do mundo. Justo pelo motivo da intimidade. Mas o que eu queria dizer sobre o nosso quintal é outra coisa (...)eu estava a pensar em achadouros de infâncias. Se  a gente cavar um buraco ao pé de goiabeira do quintal, lá estará um guri ensaiando subir na goiabeira. Se a gente cavar um buraco ao pé do galinheiro, lá estará um guri tentando agarrar no rabo de uma lagartixa. Sou hoje um caçador de achadouros da infância. Vou meio dementado e enxada às costas cavar no meu quintal vestígios dos meninos que fomos [...].

domingo, 22 de julho de 2012

Ser - Carlos Drummond de Andrade

O filho que não fiz
hoje seria homem.
Ele corre na brisa,
sem carne, sem nome.

Às vezes o encontro
num encontro de nuvem.
Apoia em meu ombro
seu ombro nenhum.

Interrogo meu filho,
objeto de ar:
em que gruta ou concha
quedas abstrato?

Lá onde eu jazia,
responde-me o hálito,
não me percebeste,
contudo chamava-te

como ainda te chamo
(além, além do amor)
onde nada, tudo
aspira a criar-se.

O filho que não fiz
faz-se por si mesmo.



Andrade, Carlos Drummond de, 1902-1987.
Claro enigma/ Carlos Drummond de Andrade;
São Paulo: Companhia das letras, 2012.

Amar - Carlos Drummond de Andrade

Que pode uma criatura senão,
entre criaturas amar?
amar e esquecer,
amar e malamar,
amar, desamar, amar?
sempre, e até de olhos vidrados, amar?

Que pode, pergunto, o ser amoroso,
sozinho, em rotação universal, senão
rodar também, e amar?
amar o que o mar traz à praia,
o que ele sepulta, e o que, na brisa marinha,
é sal, ou precisão de amor, ou simples ânsia?

Amar solenemente as palmas do deserto,
o que é entrega ou adoração expectante,
e amar o inóspito, o áspero,
um vaso sem flor, um chão de ferro,
e o peito inerte, e a rua vista em sonho, e uma ave de rapina.

Este o nosso destino: amor sem conta,
distribuído pelas coisas pérfidas ou nulas,
doação ilimitada a uma completa ingratidão,
e na concha vazia do amor a procura medrosa,
paciente, de mais e mais amor.

Amar a nossa falta mesma de amor, e na secura nossa
amar a água implícita, e o beijo tácito, e a sede infinita.



Andrade, Carlos Drummond, 1902-1987.
Claro enigma/ Carlos Drummond de Andrade-São Paulo: Companhia das Letras, 2012.

quarta-feira, 11 de julho de 2012

Tanto mais eu te contemplo - Affonso Romano de Sant'Anna

Tanto mais eu te contemplo
tanto mais eu me absorvo
e me extasio.

Como te explicar
o que em teu corpo eu sinto,
o que em teus olhos vejo,
quando nua nos meus braços
nos meus olhos nua,
de novo eu te procuro
e no teu corpo vou-me achar?

Como te explicar
se em teu corpo eu me eternizo
e de onde e como
sendo eu pequeno e frágil
pelo amor me dualizo?
Tanto mais eu te possuo
tanto mais te tornas bela,
tanto mais me torno eu puro.

E à força, de tanto contemplar-te
e de querer-te tanto,
já pressinto que em mim mesmo
eu não me tenho,
mas de meu ser, ora vazio,

pouco a pouco fui mudando
para o teu ser de graça cheio.


Sant'Anna, Affonso Romano, 1937-
Poesia reunida: 1965-1999 / Affonso Romano de Sant'Anna.- Porto Alegre: L&PM, 2004.

A voz de Deus - Fernando Pessoa

"Com dia teço a noite,
Com noite escrevo o dia...
Ó Universo, eu sou-te!"
(Sombra de luz na bruma fria,
Que é este archote?
Que mão o tem e o guia?)

"Não me chamo o meu nome...
Sou de ti, mundo-não,
Ser mente em ti eu sou-me!"
(De quem esta voz-clarão?
D'O que tem por cognome
O ser da imensidão)


Pessoa, Fernando, 1888-1935.
Poesia, 1902-1917 / Fernando Pessoa; edição Manuela Parreira da Silva, Ana Maria Freitas, Madalena Dine. - São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

Dobre - Fernando Pessoa

Peguei no meu coração E pu-lo na minha mão.

Olhei-o como quem olha
Grãos de areia ou uma folha.

Olhei-o pávido e absorto
Como quem sabe estar morto;

Com a alma só comovida
Do sonho e pouco da vida.


Pessoa, Fernando, 1888-1935.
Poesia, 1902-1917/ Fernando Pessoa; edição Manuela Parreira da Silva, Ana Maria Freitas, Madalena Dine.- São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

terça-feira, 10 de julho de 2012

Caminho - Adonis

Caminho e atrás de mim caminham as estrelas
até seu próximo amanhã
o segredo, a morte, o que nasce, o cansaço
amortecem meus passos, avivam meu sangue.

Não iniciei a trilha, ainda
não vejo nenhum jazigo
caminho até mim mesmo, até
meu próximo amanhã
caminho e atrás de mim caminham as estrelas.


ADONIS. Poemas. Organização e tradução de Michel Sleiman. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.

domingo, 8 de julho de 2012

Destino do poeta - Octavio Paz

Palavras? Sim, de ar
e perdidas no ar.
Deixa que eu me perca entre palavras,
deixa que eu seja o ar entre esses lábios
um sopro erramundo sem contornos,
breve aroma que no ar se desvanece.

Também a luz em si mesma se perde.


Paz, Octavio; Campos, Haroldo. Transblanco ( em torno a Blanco de Octavio Paz. Rio de Janeiro: Guanabara, 1986.

Ontologia - Alex Varella

Existem o mar e o sol.

E além disso,

também existem o sol e o mar do poema.



Varella, Alex. Céu em cima/Mar embaixo. Rio de Janeiro: Topbooks, 2012.

terça-feira, 3 de julho de 2012

Tristeza - Fernando Pessoa

Falo-me em versos tristes,
Entrego-me a versos cheios
De névoa e de luar;
E esses meus versos tristes
São ténues, céleres veios
Que esse vago luar
Se deixa pratear.

Sou alma em tristes cantos,
Tão tristes como as águas
Que uma castelã vê
Perderem-se em recantos
Que ela em soslaio, de pé,
No seu castelo de prantos
Perenemente vê...
Assim as minhas mágoas não domo
Cantam-me não sei como
E eu canto-as não sei porquê.



Pessoa, Fernando,1888-1935.
Poesia, 1902-1917/ Fernando Pessoa; ed. Manuela Parreira da Silva, Ana Maria Freitas, Madalena Dine.-São Paulo: Companhia das Letras, 2006.



quinta-feira, 7 de junho de 2012

O pai - Eduardo Galeano

Vera faltou na escola. Ficou o dia inteiro trancada em casa. Ao anoitecer, escreveu uma carta ao pai. O pai de Vera estava muito doente, no hospital. Ela escreveu:
- Peço que você goste de você, que se cuide e se proteja, que se mime, que se sinta, que se ame, que se desfrute. Digo que gosto de você, cuido de você, protejo você, mimo você, sinto você, amo você, desfruto você.
Héctor Carnevale durou mais alguns dias. Depois, com a carta de sua filha debaixo do travesseiro, foi-se embora no sonho.


Galeano, Eduardo, 1940-
Bocas do tempo/ Eduardo Galeano - Porto Alegre: L&PM, 2004.

sábado, 26 de maio de 2012

Está alta no céu a lua - Fernando Pessoa

Está alta no céu a lua e é primavera.
Penso em ti e dentro de mim estou completo.

Corre pelos vagos campos até mim uma brisa ligeira.
Penso em ti, murmuro o teu nome; não sou eu: sou feliz.

Amanhã virás, andarás comigo a colher flores pelos campos,
E eu andarei contigo pelos campos a ver-te colher flores.

Eu já te vejo amanhã a colher flores comigo pelos campos,
Mas quando vieres amanhã e andares comigo realmente a colher flores

Isso será uma alegria e uma novidade para mim.



Pessoa, Fernando
Poesia de Alberto Caeiro/ Fernando Pessoa.
Assírio&Alvim- Rua Passos Manuel 67B - Lisboa

Quando eu não te tinha - Fernando Pessoa

Quando eu não te tinha
Amava a Natureza como um monge calmo a Cristo...
Agora amo a Natureza
Como um monge calmo à Virgem Maria,
Religiosamente, a meu modo, omo dantes,
Mas de outra maneira mais comovida e próxima.
Vejo melhor os rios quando vou contigo
Pelos campos até à beira dos rios;
Sentado a teu lado reparando nas nuvens
Reparo nelas melhor...
Tu não me tiraste a Natureza...
Tu não me mudaste a Natureza...
Trouxeste-me a Natureza para ao pé de mim.
Por tu existires vejo-a melhor, mas a mesma,
Por tu me amares, amo-a do mesmo modo, mas mais,
Por tu me escolheres para te ter  e te amar,
Os meus olhos fitaram-na mais demoradamente
Sobre todas as cousas.

Não me arrependo do que fui outrora
Porque ainda o sou.
Só me arrependo de outrora te não ter amado.


Pessoa, Fernando
Poesia de Alberto Caeiro/ Fernando Pessoa
1ªed: setembro 2001/ 3ª ed. corrigida: outubro 2009
Asssírio & Alvim
Rua Passos Manuel,67B, 1150 - Lisboa


sexta-feira, 25 de maio de 2012

Sopa de letras - Eduardo Galeano

Pelo tamanho e pelo brilho, parece uma lágrima. Os cientistas o chamam de lepisma saccharina, mas ele responde pelo nome de peixinho de prata, embora de peixe não tenha nada e não conheça a água.
Dedica-se a devorar livros, embora também não tenha nada de traça. Come o que encontra, romances, poemas, enciclopédias, pouco a pouco, engolindo palavra, de qualquer idioma.
Passa a vida na escuridão das bibliotecas. Do resto, não tem nem idéia. A luz do dia o mata.
Seria erudito, se não fosse inseto.


Galeano, Eduardo, 1940-
Bocas do tempo / Eduardo Galeano. - Porto Alegre: L&PM, 2004

terça-feira, 22 de maio de 2012

De não em não - Bartolomeu Campos de Queirós

Inteira, ela espreitava a terra inteira. Seu luar frio acariciava as pedras, as folhas, as águas, invadindo frestas até a alma. Sua claridade lapidava as trevas com perguntas e labirintos. Seu silêncio, de pouco em pouco, recordava conversas sobre perdidas palavras, gastos gestos, antigos amores. Inteira, no escuro do céu, ela despertava, com anil e sossego, mágoas inteiras. E nessa noite eles dormiam por terra, entre trastes, frio e mais abandono. Foi no coração do escuro que os soluços acordaram a mãe de sua madorna. Ela trancou os ouvidos com as mãos e desespero.
Tentou retornar o sono apertando os olhos e alucinada. Ela bem conhecia a origem das lágrimas dos meninos. Era a Fome, hóspede previsível. Entrava sem chaves, sem respeitar trancas. Surgia sem consentimento, negando trégua ao repouso.
Mas na casa só havia o vazio e o resto. A Fome, há muito, andava corroendo tudo. Devorou o relógio do pai e com ele engoliu o tempo; comeu a esperança junto com a medalha de ouro da mãe; mastigou o rádio de pilha e assim trancou a música. Isso, depois de mastigar as camas, as cadeiras, as mesas. o armário com todos os seus pertences. E  nada reinava absoluto por todos os cantos dos cômodos. Era maio, e o frio da noite aquecia mais e mais a Fome. Na casa, só havia o vazio e o resto - nem mais tempo, esperança ou ruído. Mesmo as moscas já não mais zumbiam sua música ou pousavam nos lábios ressecados dos filhos, quando adormecidos. No fogão, as cinzas do que antes fora fogo acusavam a ausência de tudo.
Quanto menos se possui, com mais frequência a Fome nos visita - a mãe suspeitava.
A força dos braços do pai somada aos dias inteiros de trabalho não mais afugentavam a insistência da Fome. Era preciso ter mais horas e maior resistência para estancar, ainda que temporariamente, as demandas de sua presença.
A mãe, há muito, não abria o rosto em sorriso e as mãos para os carinhos. E se na noite faltava sono, o sonho era preenchido com memórias  pesares. A Fome devorava também os amores, lastimava a mulher.
A falta crescia demasiadamente na casa. Algum murmúrio só retalhava o vazio em raros momentos.
Escutava-se um lamento, uma queixa, um soluço. A fome vinha degustando as palavras, frases, orações. Comia letra por letra, deixando a mudez em todas as bocas.
As conversas se teciam por meio de olhares cúmplices, corpos reprimidos, mãos estendidas. Mas o resto era tão pouco que não necessitava muitas palavras para nomeá-lo.
O pai se despediu um dia.
Levou o par de alianças para dispor e negociar com a Fome um pouco mais de vida.
Ficou no dedo da mão esquerda da mulher uma sombra desbotada de partida.
Ela contemplava o sinal com ilusão de reencontro. Sem preces, a mãe reconhecia os desígnios do eterno.
E tudo suportava, clarividente, para afastar dos filhos a presença da Fome e suas ameaças sem fronteiras.
A mulher sabia da necessidade de bem atender às exigências da Fome. Se não saciamos seu desejo, ela nos mata sem piedade, com golpe lento, pensava.
Chega mansa, assaltando o orgulho de ser humano. Depois rói o estômago para em seguida fazer tremer a pouca carne do corpo.
Embaça o olhar, tornando mais turvo o mundo, para então escurecer o pensamento. Assim, a vida se faz definitivamente noite, sem mais sono ou sonho. Porque a Fome é forte e mata.
Todos, quando pressentem sua chegada, buscam uma maneira de alimentá-la, sem demora.
Perseguem trabalho, procuram campos, abandonam famílias, ganham calúnias, merecem suspeitas, assaltam, violentam. Pelo pavor da Fome devorar  vida, perde-se o limite dos muros.
A Fome não fala, mas exige pela dor - suspeitava a mãe.
Todos desconhecem o tamanho de sua boca e a medida de seus braços. Ela é capaz de abraçar uma nação inteira de homens em um mesmo tempo. Só se vê a Fome quando nos espelhos a apreciamos vestida em nosso corpo, transbordando loucura em nosso olhar. Ela chega impaciente. Orações, promessas, novenas - nada a Fome atende, respeita ou perdoa. E a Fome come por muitos. Com o devorado ela arma grandes banquetes para os seus senhores, generosamente. Em porcelana, linho, cristal, ela serve o resultado do vazio deixado no estômago dos oprimidos. Ela está sempre pronta para servir à mesa de seus donos, onde nada falta.
Por comerem tanto e sempre, os patronos da Fome nunca experimentaram na carne a crueldade de sua aliada.
Eles sabem de sua existência e seus lucros, sem jamais encarná-la.
Quando a tarde recolhia o voo dos pássaros entre galhos e ninhos e a lua crescia nas bordas das montanhas, a felicidade invadia provisoriamente o espírito da mãe. A fantasia era um acalanto amaciando o fim do poente. Quem sabe o marido chegaria abraçando os filhos depois de ter travado uma aliança com a Fome?
Mas naquela noite de choro - pois na casa só havia o vazio e o resto - nasceu no coração aflito da mãe um caminho.
Ela buscou a bacia encostada no canto da cozinha e deixou no meio do terreiro. Encheu o lago com água clara e madrugada.
Salgou com lágrimas aquele mar de tristeza.
Pescou a lua cheia do céu para dentro das ondas. Chamou pelos filhos e se assentaram na beira do oceano ou nas margens do prato. Com voz rouca e branda, como se evitando acordar a mentira, a mãe declamou para os filhos a sua tristeza:
- Não sei por onde viaja nosso pai.
Partiu para dispor das alianças e dilatar nossa vida. Alimentar a Fome era o seu querer, antes que ela nos golpeasse a todos.
Não sei se ele dorme cansado, coberto por esta noite branca, ou quem sabe ele vela, entre marquise e sarjeta, uma saudade como a nossa, enxaguada de luar.
A ausência do pai trouxe mais medo da Fome na alma dos meninos. A mãe, agora senhora dos milagres, cortou em quatro partes a lua das águas. E antes que a madrugada devorasse a noite, eles comeram a lua no café da manhã. As lágrimas da mãe caíram como pedras e anéis nas águas do lago, acariciando com ondas a falsa lua e o resto de maio.
A beleza engana, ela sabia, ao vislumbrar três rostos de anjos boiando dentro das águas.
O dia desbotou a lua no fundo do prato, lentamente. Nas águas, no que antes fora mar, a mãe efregava um resto de roupa, entre espumas, dedos e sombra de aliança, como se sovando a massa para o pão da ceia.
Os meninos, naquela hora, estariam vencendo as ruas, de porta em porta, de esquina em esquina, de lixo em lixo, de não em não, buscando armas para matar a Fome.


Queirós, Bartolomeu Campos de
De não em não/ Bartolomeu Campos de Queirós;
2ª edição - São Paulo: Global, 2009

segunda-feira, 21 de maio de 2012

Um punhado de passarinhos - Lázaro Simões Neto

Viver
Sem tangará
E sabiá?

Ser feliz
Sem pitiguari
E bem-te vi?

Ver o céu
Sem viuvinha
E andorinha?

Não ouvir
Pichochó
E curió?

Coloridos, livres,
Soltinhos,
Quero um punhado
De pasarinhos!


Simóes Neto, Lázaro, 1954-
O que levar para uma ilha deserta/Lázaro Simões Neto.
-São Paulo: Leya, 2011.

Poesia na varanda - Sonia Junqueira

Brotou do chão a poesia
na forma de uma plantinha
espigada, perfumosa,
se abrindo toda pra mim:
mensageiro da alegria,
era um pé de alecrim
que dourou a minha vida...

na forma de uma gatinha
amarela, tão macia!,
uma bola peludinha
que chegou bem de mansinho...
Batizei-a de Chiquinha,
fiquei com ela pra mim.

Entrou em mim a poesia
na forma de uma canção
que falava de uma rua
com pedrinhas de brilhantes
e de um anjo solitário
que vivia por ali
e roubou um coração.

Gritou no mato a poesia
quando caiu a noitinha:
tantos astros em seresta,
pois era dia de festa,
e dentro da boca da noite
cantaram um coro sem fim...

Brilhou pra mim a poesia
na forma de lua cheia
e de um céu estrelado
despencando no telhado
de zinco do avarandado,
pronto pra ser pisado
por alguém bem distraído...

Cresceu em mim a poesia
na forma de uma tristeza,
um chorinho derramado
no silêncio da varanda.
Veio vindo, foi chegando
-carregada pelo vento?-
e tomou conta de mim.

Caiu do céu a poesia
na forma de uma chuvinha,
pingos grossos, cheiro doce,
que molhou as redondezas,
encharcou os meus cabelos,
inundou a minha vida
e levou minha tristeza.

Sorriu pra mim a poesia
na forma de um amigo
-mão estendida, carinho,
e estar juntos, quietinhos
ou ouvindo, ou contando,
ou rindo e barulhando...-
e abraçou minha vida.

Me arrebatou a poesia
trazida pelas palavras
abrigadas entre as páginas
do livro que alguém lia
e que deixou por ali:
mundo entrando pelos olhos,
enriqueceu minha vida.

Agora, sempre que quero
saber cadê a poesia,
dou um pulo na varanda,
me debruço - e espero:
quem sabe se de repente
ela volta e, simplesmente,
vem contar por onde anda...


Junqueira, Sonia
Poesia na varanda/ Sonia Junqueira
Belo Horizpnte: Editora Gutenberg, 2010.

Contadores - Rosana Rios

Contadores de histórias me fascinam
quando soltam seus sonhos pelo ar:
eles falam de reis e de rainhas,
de castelos, de fadas, de ratinhas,
gatos, dragões, leões, monstros do mar.

Contadores de histórias têm poderes,
nem precisam de vara de condão.
Os seus contos são como encantamentos,
que amarram o sol e soltam ventos,
prendem luas e brincam com o trovão.

Eles parecem meros contadores,
mas são encantadores de serpentes;
com suas melodias encantadas
têm mais poder que magos, bruxas, fadas,
e brincam com a imaginação da gente..

Contadores de histórias colecionam
palavras impregnadas de magia,
lendas antigas que fazen chorar,
mitos fantásticos de além do mar,
sonhos que a gente sonha até de dia.

Contadores de histórias, quando dormem,
sonham com feiticeiros ao luar;
ouvem canções de mundos deslumbrantes,
conhecem príncipes , elfos, gigantes,
e se lembram de tudo ao acordar!

Contadores de histórias me enfeitiçam
como nenhuma bruxa nunca fez:
suas palavras causam arrepios,
voam nos ares e correm nos rios,
quando começam seu era uma vez...


Rios, Rosana Palavras mágicas/ Rosana Rios
São Paulo: Studio Nobel, 2010.

Ode a uma estrela - Pablo Neruda

Ao subir à noite no terraço de um arranha-céu altíssimo e aflitivo pude tocar a abóboda noturna e em um ato de amor extraodinário apoderei-me de uma estrela celeste. Era uma noite negra e eu deslizava pelas ruas com a estrela roubada em meu bolso.
De trêmulo cristal parecia e era num átimo como se levasse um pacote de gelo ou uma espada de arcanjo na cintura. Guardei-a, temeroso, debaixo da cama para que ninguém a descobrisse, sua luz porém atravessou primeiro a lã do colchão, depois as telhas, e o telhado da minha casa.
Incômodos tornaram-se para mim os afazeres mais comuns. Sempre com essa luz de astral acetileno que palpitava como se quisesse retornar para a noite, eu não podia dar conta de todos os meus deveres cheguei a esquecer de pagar as minhas contas e fiquei sem pão nem mantimentos. Enquanto isso, na rua, se amotinavam transeuntes, boêmios vendedores atraídos sem dúvida pelo insólito clarão que viam sair de minha janela. Então recolhi outra vez minha estrela, com cuidado a envolvi em um lenço e mascarado entre a multidão passei sem ser reconhecido. Tomei a direção oeste, rumo ao rio Verde, que ali sob o arvoredo flui sereno. Peguei a estrela da noite fria e suavemente lancei-a sobre as águas. E não  me surpreendeu notar que se afastava como peixe insolúvel movendo na noite do rio seu corpo de diamante.


Neruda, Pablo 1904-1973
Ode a uma estrela: Pablo Neruda
Título original: Oda a uma estrela
Tradução: Carlito Azevedo
São Paulo: Coac Naif, 2ª ed., 2002

segunda-feira, 14 de maio de 2012

Pobres das flores - Fernando Pessoa por Alberto Caeiro

Pobres das flores nos canteiros dos jardins regulares.
Parecem ter medo da polícia...
Mas tão boas que florescem do mesmo modo
E têm o mesmo sorriso antigo
Que tiveram à solta para o primeiro olhar do primeiro homem
Que as viu aparecidas e lhes tocou levemente
Para ver se elas falavam...


Pessoa, Fernando.
Fernando Pessoa/ Poesia de Alberto Caeiro
edição de Fernando Cabral Martins/Richard Zenith
3ª edição- 0642
ASSIRIO&ALVIM
Rua Passos Manuel, 67B, 1150-256. Lisboa-Portugal.

O guardador de rebanhos - Fernando Pessoa por Alberto Caeiro

O meu olhar é nítido como um girassol.
Tenho o costume de andar pelas estradas
Olhando para a direita e para a esquerda,
E de vez em quando olhando para trás...
E o que vejo a cada momento
É aquilo que nunca antes eu tinha visto,
E eu sei dar por isso muito bem...
Sei ter o pasmo comigo
Que teria uma criança se, ao nascer,
Reparasse que nascera deveras...
Sinto-me nascido a cada momento
Para a eterna novidade do mundo...

Creio no mundo como um malmequer,
Porque o vejo. Mas não penso nele
Porque pensar é não compreender...
O mundo não se fez para pensarmos nele
(Pensar é estar doente dos olhos)
Mas para olharmos para ele e estarmos de acordo.

Eu não tenho filosofia: tenho sentidos...
Se falo na Natureza não é porque saiba o que ela é,
Mas porque a amo, e amo-a por isso,
Porque quem ama nunca sabe o que ama
Nem sabe porque ama, nem o que é amar...

Amar é a eterna inocência,
E a única inocência é não pensar...


Pessoa, Fernando.
Fernando Pessoa/Poesia de Alberto Caeiro
Edição 0642
1ª edição: setembro de 2001/ 3ª edição corrigida: outubro 2009
ASSÍRIO&ALVIM - Rua Passos Manuel,67 B, 1150-258 -Lisboa, Portugal.

quinta-feira, 10 de maio de 2012

Juana aos quatro anos - Eduardo Galeano

Anda Juana e dá-lhe conversa com a alma, que é tua companheira de dentro, enquanto caminha pela beira da calçada, na pequena cidade de San Miguel  de Nepantla. Ela sente-se muito feliz porque tem soluço,e Juana cresce quando tem soluço. Para e olha a sombra, que cresce com ela, e com um galho vai medindo depois de cada pulinho de sua barriga. Também os vulcões cresciam com o soluço, antes, quando estavam vivos, antes de que os queimasse o seu próprio fogo. Dois dos vulcões ainda fumegam , mas já não têm soluço. Já não crescem. Juana tem soluço e cresce. Cresce.
Chorar, em compensação, encolhe. Por isso têm tamanho de barata as velhinhas e as carpideiras dos enterros. Isso não dizem os livros do avô, que Juana lê, mas ela sabe. São coisas que sabe, de tanto conversar com a alma. Também com as nuvens conversa Juana.Para conversar com as nuvens é preciso subir nas montanhas ou nos galhos mais altos das árvores.
- Eu sou nuvem. Nós, nuvens, temos carase mãos. Pés, não.



Galeano, Eduardo, 1940-
Mulheres/ Eduardo Galeano; tradução de Eric Nepomuceno.- Porto Alegre: L&PM, 2011.

Longo, inflado descanso - Clarice Lispector

Que perfume, é domingo de manhã. O terraço está varrido. Liga o rádio, então. Almoçar tarde dá pensamentos, ele ri e dá-lhes uma forma. Se bebe água, mas domingo ninguém tem sede. E começa a ânsia de beber água sem o cansaço da sede. Às quatro horas da tarde hastearão a bandeira no pavilhão. (Mas do que ele tem mesmo medo é dessas noites felizes de domingo.)



Licença editorial para o Círculo do Livro por cortesia de Paulo Gurgel Valente.
Edição integral Copyright 1980 by Espólio de Clarice Lispector

Despedidas - Affonso Romano de Sant'Anna

Começo a alhar as coisas
como quem, se despedindo, se surpreende
com a singularidade
que cada coisa tem
de ser e estar.

Um beija-flor no entardecer desta montanha
a meio metro de mim, tão íntimo,
essas flores às quatro horas da tarde, tão cúmplices,
a umidade da grama na sola dos pés, as estrelas
daqui a pouco, que intimidade tenho com as estrelas
quanto mais habito a noite!

Nada mais é gratuito, tudo é ritual.
Começo a amar as coisas
com a desprendimento que só têm
os que amando tudo o que perderam
já não mentem.



Sant'Anna, Affonso Romano de, 1937-
Poesia Reunida: 1965/1999/ Affonso Romano de Sant'Anna.--Porto Alegre: L&PM, 2004

sábado, 5 de maio de 2012

Itens de sobrevivência - Luis Carlos de Menezes

Em tempos nada fáceis
quis uma amiga
cansada de batalha
que lhe indicasse
provisões de jornada
coisa leve e contada

Aceitando o pedido
fiz primeiro uma lista
que pra encurtar a história
não dava pra levar
nem na memória

Tive então de cortar
de ir pondo fora
deixando o essencial
como resumo agora

Um álbum de sorrisos
de velho ou de criança
que pode ser de ajuda
para carência aguda
de esperança

Uma dose oriental
de paciência
pra conseguir cruzar
sem se contaminar
o império da violência

Lembranças escolhidas
de colo de mãe ou amante
de abraços de amigos
e bons apertos de mão
para aliviar a solidão

Um lampejo de sonho
de projeto e utopia
pra aquecer a alma
contra os famosos
baldes de água fria

Idéias novas
em contas de brilho e cor
presas a um fio
de uma ironia fina
pra exorcizar
mediocridade e rotina

Um manual completo
de lições de abismo
e algum contraveneno
pra poder encarar
em qualquer terreno
os mestres do cinismo

Incluí afinal
como recurso extremo
reserva adicional
de lágrimas sinceras
que a depender do golpe
ou da hora
só sobrevive quem chora



Menezes, Luis Carlos de
Lições do acaso/ Luis Carlos de Menezes
São Paulo: Ateliê Editorial, 2009.

Receitas com liberdade - Luis Carlos de Menezes

Liberdades
mais que conquistas
são receitas para viver

Liberdade é pretexto
para viver com prazer

Liberdade é promessa
para viver com esperança

Liberdade é projeto
para viver com coragem

Liberdade é princípio
para viver com paixão

Liberdade é premissa
para viver com liberdade



Menezes, Luis Carlos
Lições do acaso/ Luis Carlos de Menezes
São Paulo: Ateliê Editorial, 2009

Do mesmo jeito - Luis Carlos de Menezes

Quem lavra outra palavra esquece a frase feita
quem vai buscar o sonho
não leva o conquistado
quem procura outro rumo
não repete caminho

Quem decide manter
o conhecido
o dito
e o feito
já decidiu ficar
do mesmo jeito



Menezes, Luis Carlos de
Lições do acaso/ Luiz Carlos de Menezes
São Paulo: Ateliê Editorial, 2009

Todas as liberdades - Luis Carlos de Menezes

Todas as liberdades
de fato
são só duas

Uma é conhecimento
pra evitar riscos
ao escolher caminhos

Outra é aventura
pra correr riscos
ao descobrir caminhos

Uma é filha da outra



Menezes, Luis Carlos de
Lições do acaso/ Luis Carlos de Menezes
São Paulo: Ateliê Editorial, 2009

sexta-feira, 4 de maio de 2012

Não soltar os cavalos - Clarice Lispector

Como em tudo, no escrever também tenho uma espécie de receio de ir longe demais. Que será isso?
Por que? Retenho-me, como se retivesse as rédeas de um cavalo que poderia galopar e me levar Deus sabe onde. E me guardo. Por que e para que? para o que estou me poupando? Eu já tive clara consciência disso quando uma vez escrevi: "é preciso não ter medo de criar". Por que o medo? Medo de conhecer os limites de minha capacidade? ou medo do aprendiz de feiticeiro que não sabia como parar? Quem sabe, assim como uma mulher que se guarda intocada para dar-se um dia ao amor, talvez eu queria morrer toda inteira para que Deus me tenha toda.


Lispector, Clarice.
Para não esquecer / Clarice Lispector. Licença editorial para o Círculo do Livro por cortesia de Paulo Gurgel Valente. Copyright 1980 by Espólio de Clarice Lispector.

quinta-feira, 3 de maio de 2012

A função da arte/1 - Eduardo Galeano

Diego não conhecia o mar. O pai, Santiago Kovadloff, levou-o para que descobrisse o mar.
Viajaram para o Sul.
Ele, o mar, estava do outro lado das dunas altas, esperando.
Quando o menino e o pai enfim alcançaram aquelas alturas de areia, depois de muito caminhar, o mar estava na frente de seus olhos. E foi tanta a imensidão do mar, e tanto seu fulgor, que o menino ficou mudo de beleza.
E quando finalmente conseguiu falar, tremendo, gaguejando, pediu ao pai:
- Me ajuda a olhar!


Eduardo Galeano

segunda-feira, 23 de abril de 2012

Leilão de jardim - Cecília Meireles

Quem me compra um jardim com flores? borboletas de muitas cores,
lavadeiras e passarinhos,
ovos verdes e azuis nos ninhos?
Quem me compra este caracol?
Quem me compra um raio de sol?
Um lagarto entre o muro e a hera,
uma estátua da Primavera?
Quem me compra este formigueiro?
E este sapo, que é jardineiro?
E a cigarra e a sua canção?
E o grilinho dentro do chão?

(Este é o meu leilão!)


Meireles, Cecília, 1901-1964.
Ou isto ou aquilo; ilustrações de Eleonora Affonso. Rio de Janeiro,
Civilização Brasileira; 4ª ed.; 1980.

Aurora - Adolfo Casais Monteiro

A poesia não é voz- é uma inflexão.
Dizer, diz tudo a prosa.  No verso
nada se acrescenta a nada, somente
um jeito impalpável dá figura
ao sonho de cada um, expectativa
das formas por achar. No verso nasce
à palavra uma verdade que não acha
entre os escombros da prosa o seu caminho.
E aos homens um sentido que não  há
nos gestos nem nas coisas:

voo sem pássaro dentro.


Monteiro, Adolfo Casais. "Voo sem pássaro dentro". In.- Poesias completas.
Lisboa: Casa da moeda, 1993.

Não se mate - Carlos Drummond de Andrade

Carlos, sossegue, o amor
é isso que você está vendo:
hoje beija, amanhã não beija,
depois de amanhã é domingo
e segunda-feira ninguém sabe
o que será.

Inútil você resistir
ou mesmo suicidar-se.
Não se mate, oh não se mate,
reserve-se todo para
as bodas que ninguém sabe
quando virão,
se é que virão.

O amor, Carlos, você telúrico,
a noite passou em você,
e os recalques se sublimando,
lá dentro um barulho inefável,
rezas,
vitrolas,
santos que se persignam,
anúncios do melhor sabão,
barulho que ninguém sabe
de quê, pra quê.

Entretanto você caminha
melancólico e vertical.
Você é a palmeira, você é o grito
que ninguém ouviu no teatro
e as luzes todas se apagam.
O amor no escuro, não, no claro,
é sempre triste, meu filho, Carlos,
mas não diga nada a ninguém,
ninguém sabe nem saberá.


Andrade, Carlos Drummond de. "Brejo das almas." In:--. Poesia Completa. Rio de janeiro: Nova Aguilar, 2002.

domingo, 15 de abril de 2012

Meu epitáfio - Cora Coralina

Morta... serei árvore,
serei tronco, serei fronde
e minhas raízes
enlaçadas às pedras de meu braço
são as cordas que brotam de uma lira.

Enfeitei de folhas verdes
a pedra de meu túmulo
num simbolismo
de vida vegetal.

Não morre aquele
que deixou na terra
a melodia de seu cântico
na música de seus versos.


Coralina, Cora, 1889-1985.
Melhores poemas/ Cora Coralina;seleção e apresentação Darcy França Denófrio. 2ª ed. rev. e ampliada - São Paulo: Global, 2004.

Ofertas de Aninha (aos moços) - Cora Coralina

Eu sou aquela mulher
a quem o tempo
muito ensinou.
Ensinou a amar a vida.
Não desistir da luta.
Recomeçar na derrota.
Renunciar a palavras e pensamentos negativos.
Acreditar nos valores humanos.
Ser otimista.

Creio numa força imanente
que vai ligando a família humana
numa corrente luminosa
de fraternidade universal.
Creio na solidariedade humana.
Creio na superação dos erros
e angústias do presente.

Acredito nos moços.
Exalto sua confiança,
generosidade e idealismo.
Creio nos milagres da ciência
e na descoberta de uma profilaxia
futura dos erros e violências
do presente.

Aprendi que mais vale lutar
do que recolher dinheiro fácil.
Antes acreditar do que duvidar.


Coralina, Cora, 1889-1985.
Melhores poemas/ Cora Coralina; seleção e apresentação Darcy França Denófrio. 2ª ed. rev. e ampliada.- São Paulo: Global, 2004.- (coleção melhores poemas/direção Edla van Steen).

terça-feira, 10 de abril de 2012

Que a arte não se torne para ti - Sophia de Mello Breyner

Que a arte não se torne para ti compensação daquilo que
Não soubeste ser
Que não seja transferência nem refúgio
Nem deixes que o poema te adie ou divida: mas que seja
A verdade do teu inteiro estar terrestre
Então construirás a tua casa na planície costeira
A meia distância entre a montanha e o mar
Construirás - como se diz - a casa térrea -
Construirás a partir do fundamento."


Sophia de Mello Breyner, "A casa térrea".
in: "O nome das coisas." Lisboa, 1977.

segunda-feira, 9 de abril de 2012

quando eu tiver setenta anos - Paulo Leminski

quando eu tiver  setenta anos
então vai acabar esta adolescência

vou largar da vida louca
e terminar minha livre docência

vou fazer o que meu pai quer
começar a vida com passo perfeito

vou fazer o que minha mãe deseja
aproveitar as oportunidades
de virar um pilar da sociedade
e terminar o meu curso de direito

então ver tudo em sã consciência
quando acabar esta adolescência.


Leminski, Paulo. Caprichos e relaxos. São Paulo: Brasiliense, 1985

Fábula - Paulo Henriques Britto

Um pensamento pensado
até a total exaustão
termina por germinar
no mesmo exato lugar
sua exata negação.

enquanto isso, uma ideia
trauteada numa flauta
faz uma cidade erguer-se-
é claro, sem alicerces,
mas ninguém dá pela falta.


Britto, Paulo Henriques. Formas do nada. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.

acaba que cada um - Antoine Emaz

acaba que cada um
ao menor problema
se muda de si mesmo
para um pouco mais longe
todos os dias
para um pouco mais longe

no máximo a gente se acompanha
forçando o sorriso


Emaz, Antoine. "Boue/Lama"XI. In: Lama, pele. Tradução e posfácio de Júlio Castañon Guimarães.
Rio de Janeiro: 7 Letras, 2012.

Marianna e Chamilly - Adília Lopes

Quando partires
se partires
terei saudades
e quando ficares
se ficares
terei saudades

Terei
sempre saudades
e gosto assim


Lopes, Adília. Caderno. Lisboa: Et etc.,2007.

domingo, 8 de abril de 2012

As formigas - Eduardo Galeano

Tracey Hill era menina num povoado de Connecticut, e se divertia com diversões próprias de sua idade,
como qualquer outro doce anjinho de Deus no estado de Connecticut ou em qualquer outro lugar deste planeta. 
Um dia, junto a seus companheirinhos de escola, Tracey se pôs a atirar fósforos acesos num formigueiro. Todos desfrutaram daquele sadio entretenimento infantil; Tracey, porém, ficou impressionada com uma coisa que os outros não viram, ou fizeram como se não vissem, mas que a deixou paralisada e deixou nela, para sempre, um sinal na memória: frente ao fogo, frente ao perigo, as formigas separavam-se em casais e assim, de duas em duas, bem juntinhas, esperavam a morte.


Galeano, Eduardo, 1940-
Mulheres/Eduardo Galeano; tradução de Eric Nepomuceno.- Porto Alegre: L&PM, 2011.

quinta-feira, 5 de abril de 2012

Janela sobre a palavra/2 - Eduardo Galeano

A letra A tem as pernas abertas.
A M é um sobe desce que vai e vem entre o céu e o inferno.
A O , círculo fechado, asfixia.
A R está evidentemente grávida.
- Todas as letras da palavra AMOR são perigosas - comprova Romy Díaz-Perera.
Quando as palavras saem da boca, ela as vê desenhadas no ar.


Galeano, Eduardo, 1940-
Mulheres/ Eduardo Galeano; tradução de Eric Nepomuceno.- Porto Alegre: L&PM,2011.

A pequena morte - Eduardo Galeano

Não nos provoca riso o amor quando chega ao mais profundo de sua viagem, ao mais alto de seu voo: no mais profundo, no mais alto, nos arranca gemidos,e suspiros, vozes de dor, embora seja dor jubilosa, e pensando bem não há nada de estranho nisso, porque nascer é uma alegria que dói. Pequena morte, chamam na França a culminação do abraço, que ao quebrar-nos faz por juntar-nos, e perdendo-nos faz por nos encontrar e acabando conosco nos principia. Pequena morte, dizem; mas grande, muito grande haverá de ser, se ao nos matar nos nasce.



Galeano, Eduardo, 1940-
Mulheres/ Eduardo Galeano; tradução de Eric Nepomuceno.- Porto Alegre: L&PM,2011.

sábado, 24 de março de 2012

O mundo é grande - Carlos Drummond de Andrade

O mundo é grande e cabe
nesta janela sobre o mar.
O mar é grande e cabe
na cama e no colchão de amar.
O amor é grande e cabe
no breve espaço de beijar.


Andrade, Carlos Drummond de. "Amar se aprende amando".
Poesia completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2002.

Memória - Carlos Drummond de Andrade

Amar o perdido
deixa confundido
este coração.

Nada pode o olvido
contra o sem sentido
apelo do Não.

As coisas tangíveis
tornam-se insensíveis
à palma da mão.

Mas as coisas findas,
muito mais que lindas,
essas ficarão.


Andrade, Carlos Drummond de." Claro enigma". Poesia completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar,2002.

Procuro uma alegria - Carlos Drummond de Andrade

Procuro uma alegria
na mala vazia
do fim de ano
e eis que tenho na mão
- flor do cotidiano -
o vôo de um pássaro
e de uma canção


Andrade, Carlos Drummond de. Poesia completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2002.

acaba que cada um... Antoine Emaz

Acaba que cada um
ao menor problema
se muda de si mesmo
para um pouco mais longe
todos os dias
para um pouco mais longe

no máximo a gente se acompanha
forçando o sorriso



Emaz, Antoine."Boue/Lama" XI. In: Lama, pele. Tradução e posfácio de Julio Castañon Guimarães. Rio de Janeiro. 7 letras, 2002.

domingo, 18 de março de 2012

Ontem - W.S. Merwin - Trad. Antonio Cícero

Meu amigo diz que não fui um bom filho
entende
digo sim entendo

ele dia que eu não ia
ver meus pais assiduamente sabe
e digo sim eu sei

mesmo quando eu vivia na mesma cidade ele diz
eu ia lá quem sabe uma vez
por mês quem sabe até menos
digo ah é

ele diz que da última vez que fui ver meu pai
digo a última vez que vi meu pai

ele diz que da última vez que vi meu pai
ele me perguntou sobre minha vida
como eu estava me saindo e ele
foi até o quarto
pegar alguma coisa para me dar

ah eu digo
sentindo de novo o frio
da mão de meu pai da última vez
ele diz e meu pai se virou
na soleira e me viu
olhar para o meu relógio e ele
disse sabe eu gostaria que você ficasse
e conversasse comigo

ah sim eu digo

mas se você estiver ocupado ele disse
não quero que ache que
tem que ficar
só porque eu estou aqui

eu nada digo

ele diz meu pai
disse vai ver
que você tem trabalho importante a fazer
ou então tem que encontrar
alguém não quero prender você

eu olho pela janela
meu amigo é mais velho que eu
ele diz e eu disse a meu pai que tinha
e me levantei e o deixei então
sabe

embora não tivesse que ir a lugar nenhum
nem coisa nenhuma a fazer


Merwin, W. S."Yesterday", Disp. no site Poets org, na URL. trad. Antonio Cícero.

Catar feijão - João Cabral de Melo Neto

Catar feijão de limita com escrever:
jogam-se os grãos na água do alguidar
e as palavras na da folha de papel;
e depois, joga-se fora o que boiar.
Certo, toda palavra boiará no papel,
água congelada, por chumbo seu verbo:
pois para catar esse feijão, soprar nele,
e jogar fora o leve e oco, palha e eco.

Ora, nesse catar feijão entra um risco:
o de que entre os grãos pesados entre
um grão qualquer, pedra ou indigesto,
um grão imastigável, de quebrar dente.
Certo não, quando ao catar palavras:
a pedra dá à frase seu grão mais vivo;
obstrui a leitura fluviante, flutual,
açula a atenção, isca-a com risco.


Melo Neto, João Cabral de. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995.

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

Confissão - Carlos Drummond de Andrade

Não amei bastante meu semelhante,
não catei o verme nem curei a sarna.
Só proferi algumas palavras,
melodiosas, tarde, ao voltar da festa.

Dei sem dar e beijei sem beijo.
(Cego é talvez quem esconde os olhos
embaixo do catre.) E na meia-luz
tesouros fanam-se, os mais excelentes.

Do que restou, como compor um homem
e tudo o que ele implica de suave,
de concordâncias vegetais, murmúrios
de riso, entrega, amor e piedade?

Não amei sequer a mim mesmo,
contudo próximo. Não amei ninguém.
Salvo aquele pássaro- vinha azul e doido-
que se esfacelou na asa do avião.



Andrade, Carlos Drummond de. "Claro enigma". In:- Poesia Completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2002.

sábado, 21 de janeiro de 2012

Pássaro - Cecília Meireles

Aquilo que ontem cantava
já não canta.
Morreu de uma flor na boca:
não do espinho na garganta.

Ele amava a água sem sede,
e, em verdade,
tendo asas, fitava o tempo,
livre de necessidade.

Não foi desejo ou imprudência:
não foi nada.
E o dia toca em silêncio
a desventura causada.

Se acaso isso é desventura:
ir-se a vida
sobre uma rosa tão bela,
por uma tênue ferida.



Meireles, Cecília, 1901-1964
Palavras e pétalas/ Cecília Meireles; [organizador Antonio Carlos Secchin].
-Rio de Janeiro: Desiderata, 2008.

Canção dos dias grandes - Gastão Cruz

A tarde não termina
porque o dia se esquece
de correr a cortina
pra que ele próprio cesse

É dia é dia ainda
vamos brincar correr
depois será bem-vinda
a noite que vier

E um frio tão fino
tão pouco já, tão leve
joga com o menino
no crepúsculo breve



A lua no cinema e outros poemas/organização Eucanaã Ferraz. - São Paulo:
Companhia das Letras, 2011.

[ meus amigos] - Paulo Leminski

meus amigos
quando me dão a mão
sempre deixam
outra coisa

presença
olhar
lembrança calor

meus amigos
quando me dão a mão
deixam na minha
a sua mão



A lua no cinema e outros poemas/ organização Eucanã Ferraz. - São Paulo:
Companhia das Letras, 2011.

Amigo - Alexandre O'neill

Mal nos conhecemos
inauguramos a palavra "amigo"!

"Amigo" é um sorriso
de boca em boca,
um olhar bem limpo,
uma casa, mesmo modesta, que se oferece,
um coração pronto a pulsar
na nossa mão!

"Amigo" (recordam-se, vocês aí,
escrupulosos detritos?)
"amigo" é um erro corrigido,
não o erro perseguido, explorado,
é a verdade partilhada, praticada.

"Amigo" é a solidão derrotada!

"Amigo" é uma grande tarefa,
um trabalho sem fim,
um espaço útil, um tempo fértil
"amigo" vai ser, é já uma grande festa!



A lua no cinema e outros poemas/ organização Eucanaã Ferraz. - São Paulo:
Companhia das Letras, 2011.

A canção da primavera - Gastão Cruz

A primavera canta
ouvi a sua voz
o rouxinol espanta-se
de ouvi-la como nós

A primavera canta
vais ouvi-la também
quando um pássaro canta
não se ouve mais ninguém

a primavera é ave
é ela o rouxinol
há pássaro que lave
melhor a luz do sol?



A lua no cinema e outros poemas/ organizador Eucanaã Ferraz. - São Paulo:
Companhia das Letras, 2011.

[ Na ribeira deste rio] - Fernando Pessoa

Na ribeira deste rio
ou na ribeira daquele
passam meus dias a fio.
Nada me impede, me impele,
me dá calor ou dá frio.

Vou vendo o que o rio faz
quando o rio não faz nada.
Vejo os rastros que ele traz,
numa sequência arrastada,
do que ficou para trás.

Vou vendo e vou meditando,
não bem no rio que passa
mas só no que estou pensando,
porque o bem dele é que faça
eu não ver que vai passando.

Vou na ribeira do rio
que está aqui ou ali,
e do seu curso me fio,
porque, se o vi ou não vi,
ele passa e eu confio.



A lua no cinema e outros poemas/ organização Eucanaã Ferraz. - São Paulo:
Companhia das Letras, 2011.

[as coisas] - Arnaldo Antunes

As coisas têm peso, massa, volume, tamanho, tempo, forma, cor,
posição, textura, duração, densidade, cheiro, valor, consistência,
profundidade, contorno, temperatura, função, aparência, preço,
destino, idade, sentido. As coisas não têm paz.



A lua no cinema e outros poemas/organização Eucanaã Ferraz. - São Paulo:
Companhia das Letras, 2011.

O país das maravilhas - Antonio Cícero

Não se entra no país das maravilhas,
pois ele fica do lado de fora,
não do lado de dentro. Se há saídas
que dão nele, estão certamente à orla
iridescente do meu pensamento,
jamais no centro vago do meu eu.
E se me entrego às imagens do espelho
ou da água, tendo no fundo o céu,
não pensem que me apaixonei por mim.
Não: bom é ver-se no espaço diáfano
do mundo, coisa entre coisas que há
no lume do espelho, fora de si:
peixe entre peixes, pássaro entre pássaros,
um dia passo inteiro para lá.



A lua no cinema e outros poemas/ organização Eucanaã Ferraz. - São Paulo:
Companhia das Letras, 2011.

Uma voz - Ferreira Gullar

Sua voz quando ela canta
me lembra um pássaro mas
não um pássaro cantando:
lembra um pássaro voando



A lua no cinema e outros poemas/organização Eucanaã ferraz. - São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

O tempo que não se perdeu - Pablo Neruda

Não se contam as ilusões
nem as compreensões amargas,
não há medida para contar
o que não podia acontecer-nos,
o que nos rondou como besouro
sem que tivéssemos percebido
do que estávamos perdendo.

Perder até perder a vida
é viver a vida e a morte
não são coisas passageiras
mas sim constantes, evidentes,
a continuidade do vazio,
o silêncio em que cai tudo
e por fim nós mesmos caímos.

Ai! o que esteve tão cerca
sem que pudéssemos saber.
Ai! o que não podia ser
quando talvez podia ser.

Tantas asas circunvoaram
as montanhas da tristeza
e tantas rodas sacudiram
a estrada do destino
que já não há nada a perder.

Terminaram-se os lamentos.



Neruda, Pablo, 1904-1973
O coração amarelo/ Neftali Ricardo Reyes; tradução de Olga Savary -
Porto Alegre: L&PM,2010.

sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

"Olho muito tempo o corpo de um poema" - Ana Cristina Cesar

olho muito tempo o corpo de um poema
até perder de vista o que não seja corpo
e sentir separado dentre os dentes
um filete de sangue
nas gengivas



Moriconi, Italo (organizador)
Os cem melhores poemas brasileiros do século/Italo Moriconi(organizador).-
Rio de janeiro: objetiva, 2001.

Cogito - Torquato Neto

eu sou como eu sou
pronome
pessoal intransferível
do homem que iniciei
na medida do impossível

eu sou como eu sou
agora
sem grandes segredos dantes
sem novos secretos dentes
nesta hora

eu sou como eu sou
presente
desferrolhado indecente
feito um pedaço de mim

eu sou como eu sou
vidente
e vivo tranquilamente
todas as horas o fim.



Moriconi, Italo (organizador)
Os cem melhores poemas brasileiro do século/Italo Moriconi(organizador).-
Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.

A educação pela pedra - João Cabral de Melo Neto

Uma educação pela pedra: por lições;
para aprender da pedra, frequentá-la;
captar sua voz inenfática, impessoal
(pela de dicção ela começa as aulas).
A lição de moral, sua resistência fria
ao que flui e fluir, a ser maleada;
a de poética, sua carnadura concreta;
a de economia, seu adensar-se compacta:
lições da pedra (de fora para dentro,
cartilha muda), para quem soletrá-la.

Outra educação pela pedra: no Sertão
(de dentro para fora, e pré-didática).
No Sertão a pedra não sabe lecionar,
e se lecionasse não ensinaria nada;
lá não se aprende a pedra: lá a pedra,
uma pedra de nascença, entranha a alma.



Moriconi, Italo (organizador)
Os cem melhores poemas brasileiros do século/Italo Moriconi(organizador).-Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.

Neologismo - Manuel Bandeira

Beijo pouco, falo menos ainda.
Mas invento palavras
Que traduzem a ternura mais funda
E mais cotidiana.
Inventei, por exemplo, o verbo teadorar.
Intransitivo:
Teadoro, Teodora.



Bandeira, Manuel, 1886-1968
Antologia poética.-12.ed.-Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.

Andorinha - Manuel Bandeira

Andorinha lá fora dizendo:
- "Passei o dia à toa, à toa!"

Andorinha, andorinha, minha cantiga é mais triste!
Passei a vida à toa, à toa...



Bandeira, Manuel, 1886-1968
Antologia poética. - 12.ed.- Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.

O rio - Manuel Bandeira

Ser como o rio que deflui
Silencioso dentro da noite.
Não temer as trevas da noite.
Se há estrelas nos céus, refleti-las.
E se os céus se pejam de nuvens,
Como o rio as nuvens são água,
Refleti-las também sem mágoa
Nas profundidades tranquilas.



Bandeira, Manuel,1886-1968
Antologia poética.- 12.ed.- Rio de Janeiro: Nova Fronteira,2001.

No Pão de Açúcar - Oswald de Andrade

No Pão de Açúcar
de cada dia
dai-nos Senhor
a poesia
de cada dia



Moriconi, Italo(organizador)
Os cem melhores poemas brasileiros do século/Italo Moriconi(organizador).- Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.

Soneto - Mário de Andrade

Aceitarás o amor como eu o encaro?...
...Azul bem leve, um nimbo, suavemente
Guarda-te a imagem, como um anteparo
Contra estes móveis de banal presente.

Tudo o que há de melhor e de mais raro
Vive em teu corpo nu de adolescente,
A perna assim jogada e o braço, o claro
Olhar preso no meu, perdidamente.

Não exijas mais nada. Não desejo
Também mais nada, só te olhar, enquanto
A realidade é simples, e isto apenas.

Que grandeza... A evasão total do pejo
Que nasce das imperfeições. O encanto
Que nasce das adorações serenas.



Moriconi, Italo(organizador)
Os cem melhores poemas brasileiros do século/ Italo Moriconi(organizador).-Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.

De minha mão - Manoel de Barros

De minha mão dentro do quarto
meu lambarizinho
escapuliu - ele priscava
priscava
até cair naquele
corixo.
E se beijou todo de água!
Eu se chorei...
Vi um rio indo embora de andorinhas...



Barros, Manoel de, 1916-
Poesia completa/ Manoel de Barros.-São Paulo: Leya, 2010.

Tema e variações - Manuel Bandeira

Sonhei ter sonhado
Que havia sonhado

Em sonho lembrei-me
de um sonho passado:
O de ter sonhado
Que estava sonhando.

Sonhei ter sonhado...
Ter sonhado o quê?
Que havia sonhado
Estar com você.
Estar? Ter estado,
Que é tempo passado.

Um sonho presente
Um dia sonhei.
Chorei de repente,
Pois vi, despertado,
Que tinha sonhado.



Bandeira, Manuel, 1886-1968
Antologia poética. - 12.ed. - Rio de Janeiro: Nova Fronteira,2001

domingo, 8 de janeiro de 2012

Convite - Horácio Dídimo

Venham todos
conversemos numa comunhão vulgar
sobre as mulheres e o mundo
tiremos o paletó e os sapatos
leiamos os jornais em voz alta
brindemos aos fatos imprevistos
entoemos canções ao velho mar

e que a madrugada nos encontre assim
participando rumorosamente
de uma humanidade sem destino



Roteiro da poesia brasileira: anos 60/seleção e prefácio Pedro Lyra; [direção Edla van Steen] - São Paulo: Global, 2011. - (Coleção Roteiro da poesia brasileira).

As palavras e os nomes da infância - Ângelo Monteiro

As palavras da infância tinham mágicas
Que os mágicos somente saberão,
E um ardor que os pomadores e os jardins
Nunca imaginam para o seu verão.

Palavras que - provindas de bem longe-
Viram nascer na luz de infantes olhos
O tamanho das coisas e dos homens
Medido por sua vara de condão.

O viço das palavras encantadas
Que os meninos trocavam sobre o mundo
Entre luas perdidas nas calçadas
Emanavam de um tempo mais profundo.

De um tempo em que os meninos não procuram
Outros nomes além dos nomes seus.
E nas conversas - cheias de futuro-
Nenhum fim vislumbravam num adeus.

Como os nomes que dávamos às coisas
Da malícia eram livres do legado
Saí de uma cidade para outra
Quando menino procurando Arnaldo.

Arnaldo. Não um nome de família.
Arnaldo apenas. Nada mais que Arnaldo.
Na infância os nossos nomes são o altar
De todas as estrelas em vigília.



Roteiro da poesia brasileira: anos 60/seleção e prefácio Pedro Lyra; [direção Edla van Steen] - São Paulo: Global, 2011. - (Coleção Roteiro da poesia brasileira).

Aparência - Álvaro Alves de Faria

Não é um dia
este dia
mas um instante.
Nada além
nem aquém disso:
um momento.

Não é uma noite
esta noite
mas um apelo.
Nada mais
nem menos que isso:
um pedido.

Não é o mundo
este mundo
mas sim ausência.

Nem isso nem aquilo:
só aparência.



Roteiro da poesia brasileira: anos 60/seleção e prefácio Pedro Lyra; [direção Edla van Steen] - São Paulo: Global. 2011.- ( Coleção Roteiro da poesia brasileira).

Acalanto - João de Jesus Paes Loureiro

E noite é noite alta
e, no poema,
silabam-se saudades de quem amo.
O que faria agora,
nessa hora,
aquela que me ama
e a quem eu quero?
Por que não está
aqui comigo,
entre as estrelas,
que adornam o colo claro desta noite?
(A noite debruçando em seu silêncio
a flor da solidão, pálida lua...)

Oh! sonho traz-me em tua caravela
aquela que me ama
e a quem adoro...
Tão bela
em sua moldura de ternura,
de alma musical
e meigo canto.

Então, brisa da noite, oh! brisa leve
revoa sobre o sonho - essa lagoa -
e pousa na sacada, onde ela espera
a estrela, onde me escondo para vê-la...
Vai a seu leito e roça no seu lábio
esta flor,
esta pétala de beijo.

Mas, tão de leve que ela não desperte,
e mansamente continue sonhando...



Roteiro de poesia brasileira: anos 60/seleção e prefácio Pedro Lyra; [direção Edla van Steen] - São Paulo: Global, 2011.- (Coleção Roteiro da poesia brasileira).

Filosofia - Pablo Neruda

Fica provada a certeza
da árvore verde na primavera
e do córtex terrestre
- alimentam-nos os planetas
apesar das erupções
e o mar nos oferece peixes
apesar de seus maremotos -
somos escravos da terra
que também é dona do ar.

Passeando por uma laranja
eu passei mais de uma vida
repetindo o globo terrestre
- a geografia e a ambrosia -
os jogos cor de jacinto
e um cheiro branco de mulher
como as flores da farinha.

Nada se consegue voando
para se escapar deste globo
que te aprisionou ao nascer.
E há que confessar esperando
que o amor e o entendimento
vêm de baixo, se levantam
e crescem dentro de nós
como cebolas , azinheiras,
como tartarugas ou flores,
como países, como raças,
como caminhos e destinos.



Neruda, Pablo, 1904-1973.
O coração amarelo/Neftali Ricardo Reyes; tradução Olga Savary - Porto Alegre: L&PM, 2010.

Integrações - Pablo Neruda

Depois de tudo te amarei
como se fosse sempre antes
como se de tanto esperar
sem que te visse nem chegasses
estivesses eternamente
respirando perto de mim.

Perto de mim com teus hábitos,
teu colorido e tua guitarra
como estão juntos os países
nas lições escolares
e duas comarcas se confundem
e há um rio perto de um rio
e crescem juntos dois vulcões.

Perto de ti é perto de mim
e longe de tudo é tua ausência
e é cor de argila a lua
na noite do terremoto
quando no terror da terra
juntam-se todas as raízes
e ouve-se soar o silêncio
com a música do espanto.
O medo é também um caminho.
E entre suas pedras pavorosas
pode marchar com quatro pés
e quatro lábios, a ternura.

Porque sem sair do presente
que é um anel delicado
tocamos a areia de ontem
e no mar ensina o amor
um arrebatamento repetido.


Neruda, Pablo, 1904-1973.
O coração amarelo/ Neftali Ricardo Reyes; tradução de Olga Savary - Porto Alegre: L&PM, 2010.