sábado, 24 de março de 2012

O mundo é grande - Carlos Drummond de Andrade

O mundo é grande e cabe
nesta janela sobre o mar.
O mar é grande e cabe
na cama e no colchão de amar.
O amor é grande e cabe
no breve espaço de beijar.


Andrade, Carlos Drummond de. "Amar se aprende amando".
Poesia completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2002.

Memória - Carlos Drummond de Andrade

Amar o perdido
deixa confundido
este coração.

Nada pode o olvido
contra o sem sentido
apelo do Não.

As coisas tangíveis
tornam-se insensíveis
à palma da mão.

Mas as coisas findas,
muito mais que lindas,
essas ficarão.


Andrade, Carlos Drummond de." Claro enigma". Poesia completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar,2002.

Procuro uma alegria - Carlos Drummond de Andrade

Procuro uma alegria
na mala vazia
do fim de ano
e eis que tenho na mão
- flor do cotidiano -
o vôo de um pássaro
e de uma canção


Andrade, Carlos Drummond de. Poesia completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2002.

acaba que cada um... Antoine Emaz

Acaba que cada um
ao menor problema
se muda de si mesmo
para um pouco mais longe
todos os dias
para um pouco mais longe

no máximo a gente se acompanha
forçando o sorriso



Emaz, Antoine."Boue/Lama" XI. In: Lama, pele. Tradução e posfácio de Julio Castañon Guimarães. Rio de Janeiro. 7 letras, 2002.

domingo, 18 de março de 2012

Ontem - W.S. Merwin - Trad. Antonio Cícero

Meu amigo diz que não fui um bom filho
entende
digo sim entendo

ele dia que eu não ia
ver meus pais assiduamente sabe
e digo sim eu sei

mesmo quando eu vivia na mesma cidade ele diz
eu ia lá quem sabe uma vez
por mês quem sabe até menos
digo ah é

ele diz que da última vez que fui ver meu pai
digo a última vez que vi meu pai

ele diz que da última vez que vi meu pai
ele me perguntou sobre minha vida
como eu estava me saindo e ele
foi até o quarto
pegar alguma coisa para me dar

ah eu digo
sentindo de novo o frio
da mão de meu pai da última vez
ele diz e meu pai se virou
na soleira e me viu
olhar para o meu relógio e ele
disse sabe eu gostaria que você ficasse
e conversasse comigo

ah sim eu digo

mas se você estiver ocupado ele disse
não quero que ache que
tem que ficar
só porque eu estou aqui

eu nada digo

ele diz meu pai
disse vai ver
que você tem trabalho importante a fazer
ou então tem que encontrar
alguém não quero prender você

eu olho pela janela
meu amigo é mais velho que eu
ele diz e eu disse a meu pai que tinha
e me levantei e o deixei então
sabe

embora não tivesse que ir a lugar nenhum
nem coisa nenhuma a fazer


Merwin, W. S."Yesterday", Disp. no site Poets org, na URL. trad. Antonio Cícero.

Catar feijão - João Cabral de Melo Neto

Catar feijão de limita com escrever:
jogam-se os grãos na água do alguidar
e as palavras na da folha de papel;
e depois, joga-se fora o que boiar.
Certo, toda palavra boiará no papel,
água congelada, por chumbo seu verbo:
pois para catar esse feijão, soprar nele,
e jogar fora o leve e oco, palha e eco.

Ora, nesse catar feijão entra um risco:
o de que entre os grãos pesados entre
um grão qualquer, pedra ou indigesto,
um grão imastigável, de quebrar dente.
Certo não, quando ao catar palavras:
a pedra dá à frase seu grão mais vivo;
obstrui a leitura fluviante, flutual,
açula a atenção, isca-a com risco.


Melo Neto, João Cabral de. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995.