sábado, 26 de maio de 2012

Está alta no céu a lua - Fernando Pessoa

Está alta no céu a lua e é primavera.
Penso em ti e dentro de mim estou completo.

Corre pelos vagos campos até mim uma brisa ligeira.
Penso em ti, murmuro o teu nome; não sou eu: sou feliz.

Amanhã virás, andarás comigo a colher flores pelos campos,
E eu andarei contigo pelos campos a ver-te colher flores.

Eu já te vejo amanhã a colher flores comigo pelos campos,
Mas quando vieres amanhã e andares comigo realmente a colher flores

Isso será uma alegria e uma novidade para mim.



Pessoa, Fernando
Poesia de Alberto Caeiro/ Fernando Pessoa.
Assírio&Alvim- Rua Passos Manuel 67B - Lisboa

Quando eu não te tinha - Fernando Pessoa

Quando eu não te tinha
Amava a Natureza como um monge calmo a Cristo...
Agora amo a Natureza
Como um monge calmo à Virgem Maria,
Religiosamente, a meu modo, omo dantes,
Mas de outra maneira mais comovida e próxima.
Vejo melhor os rios quando vou contigo
Pelos campos até à beira dos rios;
Sentado a teu lado reparando nas nuvens
Reparo nelas melhor...
Tu não me tiraste a Natureza...
Tu não me mudaste a Natureza...
Trouxeste-me a Natureza para ao pé de mim.
Por tu existires vejo-a melhor, mas a mesma,
Por tu me amares, amo-a do mesmo modo, mas mais,
Por tu me escolheres para te ter  e te amar,
Os meus olhos fitaram-na mais demoradamente
Sobre todas as cousas.

Não me arrependo do que fui outrora
Porque ainda o sou.
Só me arrependo de outrora te não ter amado.


Pessoa, Fernando
Poesia de Alberto Caeiro/ Fernando Pessoa
1ªed: setembro 2001/ 3ª ed. corrigida: outubro 2009
Asssírio & Alvim
Rua Passos Manuel,67B, 1150 - Lisboa


sexta-feira, 25 de maio de 2012

Sopa de letras - Eduardo Galeano

Pelo tamanho e pelo brilho, parece uma lágrima. Os cientistas o chamam de lepisma saccharina, mas ele responde pelo nome de peixinho de prata, embora de peixe não tenha nada e não conheça a água.
Dedica-se a devorar livros, embora também não tenha nada de traça. Come o que encontra, romances, poemas, enciclopédias, pouco a pouco, engolindo palavra, de qualquer idioma.
Passa a vida na escuridão das bibliotecas. Do resto, não tem nem idéia. A luz do dia o mata.
Seria erudito, se não fosse inseto.


Galeano, Eduardo, 1940-
Bocas do tempo / Eduardo Galeano. - Porto Alegre: L&PM, 2004

terça-feira, 22 de maio de 2012

De não em não - Bartolomeu Campos de Queirós

Inteira, ela espreitava a terra inteira. Seu luar frio acariciava as pedras, as folhas, as águas, invadindo frestas até a alma. Sua claridade lapidava as trevas com perguntas e labirintos. Seu silêncio, de pouco em pouco, recordava conversas sobre perdidas palavras, gastos gestos, antigos amores. Inteira, no escuro do céu, ela despertava, com anil e sossego, mágoas inteiras. E nessa noite eles dormiam por terra, entre trastes, frio e mais abandono. Foi no coração do escuro que os soluços acordaram a mãe de sua madorna. Ela trancou os ouvidos com as mãos e desespero.
Tentou retornar o sono apertando os olhos e alucinada. Ela bem conhecia a origem das lágrimas dos meninos. Era a Fome, hóspede previsível. Entrava sem chaves, sem respeitar trancas. Surgia sem consentimento, negando trégua ao repouso.
Mas na casa só havia o vazio e o resto. A Fome, há muito, andava corroendo tudo. Devorou o relógio do pai e com ele engoliu o tempo; comeu a esperança junto com a medalha de ouro da mãe; mastigou o rádio de pilha e assim trancou a música. Isso, depois de mastigar as camas, as cadeiras, as mesas. o armário com todos os seus pertences. E  nada reinava absoluto por todos os cantos dos cômodos. Era maio, e o frio da noite aquecia mais e mais a Fome. Na casa, só havia o vazio e o resto - nem mais tempo, esperança ou ruído. Mesmo as moscas já não mais zumbiam sua música ou pousavam nos lábios ressecados dos filhos, quando adormecidos. No fogão, as cinzas do que antes fora fogo acusavam a ausência de tudo.
Quanto menos se possui, com mais frequência a Fome nos visita - a mãe suspeitava.
A força dos braços do pai somada aos dias inteiros de trabalho não mais afugentavam a insistência da Fome. Era preciso ter mais horas e maior resistência para estancar, ainda que temporariamente, as demandas de sua presença.
A mãe, há muito, não abria o rosto em sorriso e as mãos para os carinhos. E se na noite faltava sono, o sonho era preenchido com memórias  pesares. A Fome devorava também os amores, lastimava a mulher.
A falta crescia demasiadamente na casa. Algum murmúrio só retalhava o vazio em raros momentos.
Escutava-se um lamento, uma queixa, um soluço. A fome vinha degustando as palavras, frases, orações. Comia letra por letra, deixando a mudez em todas as bocas.
As conversas se teciam por meio de olhares cúmplices, corpos reprimidos, mãos estendidas. Mas o resto era tão pouco que não necessitava muitas palavras para nomeá-lo.
O pai se despediu um dia.
Levou o par de alianças para dispor e negociar com a Fome um pouco mais de vida.
Ficou no dedo da mão esquerda da mulher uma sombra desbotada de partida.
Ela contemplava o sinal com ilusão de reencontro. Sem preces, a mãe reconhecia os desígnios do eterno.
E tudo suportava, clarividente, para afastar dos filhos a presença da Fome e suas ameaças sem fronteiras.
A mulher sabia da necessidade de bem atender às exigências da Fome. Se não saciamos seu desejo, ela nos mata sem piedade, com golpe lento, pensava.
Chega mansa, assaltando o orgulho de ser humano. Depois rói o estômago para em seguida fazer tremer a pouca carne do corpo.
Embaça o olhar, tornando mais turvo o mundo, para então escurecer o pensamento. Assim, a vida se faz definitivamente noite, sem mais sono ou sonho. Porque a Fome é forte e mata.
Todos, quando pressentem sua chegada, buscam uma maneira de alimentá-la, sem demora.
Perseguem trabalho, procuram campos, abandonam famílias, ganham calúnias, merecem suspeitas, assaltam, violentam. Pelo pavor da Fome devorar  vida, perde-se o limite dos muros.
A Fome não fala, mas exige pela dor - suspeitava a mãe.
Todos desconhecem o tamanho de sua boca e a medida de seus braços. Ela é capaz de abraçar uma nação inteira de homens em um mesmo tempo. Só se vê a Fome quando nos espelhos a apreciamos vestida em nosso corpo, transbordando loucura em nosso olhar. Ela chega impaciente. Orações, promessas, novenas - nada a Fome atende, respeita ou perdoa. E a Fome come por muitos. Com o devorado ela arma grandes banquetes para os seus senhores, generosamente. Em porcelana, linho, cristal, ela serve o resultado do vazio deixado no estômago dos oprimidos. Ela está sempre pronta para servir à mesa de seus donos, onde nada falta.
Por comerem tanto e sempre, os patronos da Fome nunca experimentaram na carne a crueldade de sua aliada.
Eles sabem de sua existência e seus lucros, sem jamais encarná-la.
Quando a tarde recolhia o voo dos pássaros entre galhos e ninhos e a lua crescia nas bordas das montanhas, a felicidade invadia provisoriamente o espírito da mãe. A fantasia era um acalanto amaciando o fim do poente. Quem sabe o marido chegaria abraçando os filhos depois de ter travado uma aliança com a Fome?
Mas naquela noite de choro - pois na casa só havia o vazio e o resto - nasceu no coração aflito da mãe um caminho.
Ela buscou a bacia encostada no canto da cozinha e deixou no meio do terreiro. Encheu o lago com água clara e madrugada.
Salgou com lágrimas aquele mar de tristeza.
Pescou a lua cheia do céu para dentro das ondas. Chamou pelos filhos e se assentaram na beira do oceano ou nas margens do prato. Com voz rouca e branda, como se evitando acordar a mentira, a mãe declamou para os filhos a sua tristeza:
- Não sei por onde viaja nosso pai.
Partiu para dispor das alianças e dilatar nossa vida. Alimentar a Fome era o seu querer, antes que ela nos golpeasse a todos.
Não sei se ele dorme cansado, coberto por esta noite branca, ou quem sabe ele vela, entre marquise e sarjeta, uma saudade como a nossa, enxaguada de luar.
A ausência do pai trouxe mais medo da Fome na alma dos meninos. A mãe, agora senhora dos milagres, cortou em quatro partes a lua das águas. E antes que a madrugada devorasse a noite, eles comeram a lua no café da manhã. As lágrimas da mãe caíram como pedras e anéis nas águas do lago, acariciando com ondas a falsa lua e o resto de maio.
A beleza engana, ela sabia, ao vislumbrar três rostos de anjos boiando dentro das águas.
O dia desbotou a lua no fundo do prato, lentamente. Nas águas, no que antes fora mar, a mãe efregava um resto de roupa, entre espumas, dedos e sombra de aliança, como se sovando a massa para o pão da ceia.
Os meninos, naquela hora, estariam vencendo as ruas, de porta em porta, de esquina em esquina, de lixo em lixo, de não em não, buscando armas para matar a Fome.


Queirós, Bartolomeu Campos de
De não em não/ Bartolomeu Campos de Queirós;
2ª edição - São Paulo: Global, 2009

segunda-feira, 21 de maio de 2012

Um punhado de passarinhos - Lázaro Simões Neto

Viver
Sem tangará
E sabiá?

Ser feliz
Sem pitiguari
E bem-te vi?

Ver o céu
Sem viuvinha
E andorinha?

Não ouvir
Pichochó
E curió?

Coloridos, livres,
Soltinhos,
Quero um punhado
De pasarinhos!


Simóes Neto, Lázaro, 1954-
O que levar para uma ilha deserta/Lázaro Simões Neto.
-São Paulo: Leya, 2011.

Poesia na varanda - Sonia Junqueira

Brotou do chão a poesia
na forma de uma plantinha
espigada, perfumosa,
se abrindo toda pra mim:
mensageiro da alegria,
era um pé de alecrim
que dourou a minha vida...

na forma de uma gatinha
amarela, tão macia!,
uma bola peludinha
que chegou bem de mansinho...
Batizei-a de Chiquinha,
fiquei com ela pra mim.

Entrou em mim a poesia
na forma de uma canção
que falava de uma rua
com pedrinhas de brilhantes
e de um anjo solitário
que vivia por ali
e roubou um coração.

Gritou no mato a poesia
quando caiu a noitinha:
tantos astros em seresta,
pois era dia de festa,
e dentro da boca da noite
cantaram um coro sem fim...

Brilhou pra mim a poesia
na forma de lua cheia
e de um céu estrelado
despencando no telhado
de zinco do avarandado,
pronto pra ser pisado
por alguém bem distraído...

Cresceu em mim a poesia
na forma de uma tristeza,
um chorinho derramado
no silêncio da varanda.
Veio vindo, foi chegando
-carregada pelo vento?-
e tomou conta de mim.

Caiu do céu a poesia
na forma de uma chuvinha,
pingos grossos, cheiro doce,
que molhou as redondezas,
encharcou os meus cabelos,
inundou a minha vida
e levou minha tristeza.

Sorriu pra mim a poesia
na forma de um amigo
-mão estendida, carinho,
e estar juntos, quietinhos
ou ouvindo, ou contando,
ou rindo e barulhando...-
e abraçou minha vida.

Me arrebatou a poesia
trazida pelas palavras
abrigadas entre as páginas
do livro que alguém lia
e que deixou por ali:
mundo entrando pelos olhos,
enriqueceu minha vida.

Agora, sempre que quero
saber cadê a poesia,
dou um pulo na varanda,
me debruço - e espero:
quem sabe se de repente
ela volta e, simplesmente,
vem contar por onde anda...


Junqueira, Sonia
Poesia na varanda/ Sonia Junqueira
Belo Horizpnte: Editora Gutenberg, 2010.

Contadores - Rosana Rios

Contadores de histórias me fascinam
quando soltam seus sonhos pelo ar:
eles falam de reis e de rainhas,
de castelos, de fadas, de ratinhas,
gatos, dragões, leões, monstros do mar.

Contadores de histórias têm poderes,
nem precisam de vara de condão.
Os seus contos são como encantamentos,
que amarram o sol e soltam ventos,
prendem luas e brincam com o trovão.

Eles parecem meros contadores,
mas são encantadores de serpentes;
com suas melodias encantadas
têm mais poder que magos, bruxas, fadas,
e brincam com a imaginação da gente..

Contadores de histórias colecionam
palavras impregnadas de magia,
lendas antigas que fazen chorar,
mitos fantásticos de além do mar,
sonhos que a gente sonha até de dia.

Contadores de histórias, quando dormem,
sonham com feiticeiros ao luar;
ouvem canções de mundos deslumbrantes,
conhecem príncipes , elfos, gigantes,
e se lembram de tudo ao acordar!

Contadores de histórias me enfeitiçam
como nenhuma bruxa nunca fez:
suas palavras causam arrepios,
voam nos ares e correm nos rios,
quando começam seu era uma vez...


Rios, Rosana Palavras mágicas/ Rosana Rios
São Paulo: Studio Nobel, 2010.

Ode a uma estrela - Pablo Neruda

Ao subir à noite no terraço de um arranha-céu altíssimo e aflitivo pude tocar a abóboda noturna e em um ato de amor extraodinário apoderei-me de uma estrela celeste. Era uma noite negra e eu deslizava pelas ruas com a estrela roubada em meu bolso.
De trêmulo cristal parecia e era num átimo como se levasse um pacote de gelo ou uma espada de arcanjo na cintura. Guardei-a, temeroso, debaixo da cama para que ninguém a descobrisse, sua luz porém atravessou primeiro a lã do colchão, depois as telhas, e o telhado da minha casa.
Incômodos tornaram-se para mim os afazeres mais comuns. Sempre com essa luz de astral acetileno que palpitava como se quisesse retornar para a noite, eu não podia dar conta de todos os meus deveres cheguei a esquecer de pagar as minhas contas e fiquei sem pão nem mantimentos. Enquanto isso, na rua, se amotinavam transeuntes, boêmios vendedores atraídos sem dúvida pelo insólito clarão que viam sair de minha janela. Então recolhi outra vez minha estrela, com cuidado a envolvi em um lenço e mascarado entre a multidão passei sem ser reconhecido. Tomei a direção oeste, rumo ao rio Verde, que ali sob o arvoredo flui sereno. Peguei a estrela da noite fria e suavemente lancei-a sobre as águas. E não  me surpreendeu notar que se afastava como peixe insolúvel movendo na noite do rio seu corpo de diamante.


Neruda, Pablo 1904-1973
Ode a uma estrela: Pablo Neruda
Título original: Oda a uma estrela
Tradução: Carlito Azevedo
São Paulo: Coac Naif, 2ª ed., 2002

segunda-feira, 14 de maio de 2012

Pobres das flores - Fernando Pessoa por Alberto Caeiro

Pobres das flores nos canteiros dos jardins regulares.
Parecem ter medo da polícia...
Mas tão boas que florescem do mesmo modo
E têm o mesmo sorriso antigo
Que tiveram à solta para o primeiro olhar do primeiro homem
Que as viu aparecidas e lhes tocou levemente
Para ver se elas falavam...


Pessoa, Fernando.
Fernando Pessoa/ Poesia de Alberto Caeiro
edição de Fernando Cabral Martins/Richard Zenith
3ª edição- 0642
ASSIRIO&ALVIM
Rua Passos Manuel, 67B, 1150-256. Lisboa-Portugal.

O guardador de rebanhos - Fernando Pessoa por Alberto Caeiro

O meu olhar é nítido como um girassol.
Tenho o costume de andar pelas estradas
Olhando para a direita e para a esquerda,
E de vez em quando olhando para trás...
E o que vejo a cada momento
É aquilo que nunca antes eu tinha visto,
E eu sei dar por isso muito bem...
Sei ter o pasmo comigo
Que teria uma criança se, ao nascer,
Reparasse que nascera deveras...
Sinto-me nascido a cada momento
Para a eterna novidade do mundo...

Creio no mundo como um malmequer,
Porque o vejo. Mas não penso nele
Porque pensar é não compreender...
O mundo não se fez para pensarmos nele
(Pensar é estar doente dos olhos)
Mas para olharmos para ele e estarmos de acordo.

Eu não tenho filosofia: tenho sentidos...
Se falo na Natureza não é porque saiba o que ela é,
Mas porque a amo, e amo-a por isso,
Porque quem ama nunca sabe o que ama
Nem sabe porque ama, nem o que é amar...

Amar é a eterna inocência,
E a única inocência é não pensar...


Pessoa, Fernando.
Fernando Pessoa/Poesia de Alberto Caeiro
Edição 0642
1ª edição: setembro de 2001/ 3ª edição corrigida: outubro 2009
ASSÍRIO&ALVIM - Rua Passos Manuel,67 B, 1150-258 -Lisboa, Portugal.

quinta-feira, 10 de maio de 2012

Juana aos quatro anos - Eduardo Galeano

Anda Juana e dá-lhe conversa com a alma, que é tua companheira de dentro, enquanto caminha pela beira da calçada, na pequena cidade de San Miguel  de Nepantla. Ela sente-se muito feliz porque tem soluço,e Juana cresce quando tem soluço. Para e olha a sombra, que cresce com ela, e com um galho vai medindo depois de cada pulinho de sua barriga. Também os vulcões cresciam com o soluço, antes, quando estavam vivos, antes de que os queimasse o seu próprio fogo. Dois dos vulcões ainda fumegam , mas já não têm soluço. Já não crescem. Juana tem soluço e cresce. Cresce.
Chorar, em compensação, encolhe. Por isso têm tamanho de barata as velhinhas e as carpideiras dos enterros. Isso não dizem os livros do avô, que Juana lê, mas ela sabe. São coisas que sabe, de tanto conversar com a alma. Também com as nuvens conversa Juana.Para conversar com as nuvens é preciso subir nas montanhas ou nos galhos mais altos das árvores.
- Eu sou nuvem. Nós, nuvens, temos carase mãos. Pés, não.



Galeano, Eduardo, 1940-
Mulheres/ Eduardo Galeano; tradução de Eric Nepomuceno.- Porto Alegre: L&PM, 2011.

Longo, inflado descanso - Clarice Lispector

Que perfume, é domingo de manhã. O terraço está varrido. Liga o rádio, então. Almoçar tarde dá pensamentos, ele ri e dá-lhes uma forma. Se bebe água, mas domingo ninguém tem sede. E começa a ânsia de beber água sem o cansaço da sede. Às quatro horas da tarde hastearão a bandeira no pavilhão. (Mas do que ele tem mesmo medo é dessas noites felizes de domingo.)



Licença editorial para o Círculo do Livro por cortesia de Paulo Gurgel Valente.
Edição integral Copyright 1980 by Espólio de Clarice Lispector

Despedidas - Affonso Romano de Sant'Anna

Começo a alhar as coisas
como quem, se despedindo, se surpreende
com a singularidade
que cada coisa tem
de ser e estar.

Um beija-flor no entardecer desta montanha
a meio metro de mim, tão íntimo,
essas flores às quatro horas da tarde, tão cúmplices,
a umidade da grama na sola dos pés, as estrelas
daqui a pouco, que intimidade tenho com as estrelas
quanto mais habito a noite!

Nada mais é gratuito, tudo é ritual.
Começo a amar as coisas
com a desprendimento que só têm
os que amando tudo o que perderam
já não mentem.



Sant'Anna, Affonso Romano de, 1937-
Poesia Reunida: 1965/1999/ Affonso Romano de Sant'Anna.--Porto Alegre: L&PM, 2004

sábado, 5 de maio de 2012

Itens de sobrevivência - Luis Carlos de Menezes

Em tempos nada fáceis
quis uma amiga
cansada de batalha
que lhe indicasse
provisões de jornada
coisa leve e contada

Aceitando o pedido
fiz primeiro uma lista
que pra encurtar a história
não dava pra levar
nem na memória

Tive então de cortar
de ir pondo fora
deixando o essencial
como resumo agora

Um álbum de sorrisos
de velho ou de criança
que pode ser de ajuda
para carência aguda
de esperança

Uma dose oriental
de paciência
pra conseguir cruzar
sem se contaminar
o império da violência

Lembranças escolhidas
de colo de mãe ou amante
de abraços de amigos
e bons apertos de mão
para aliviar a solidão

Um lampejo de sonho
de projeto e utopia
pra aquecer a alma
contra os famosos
baldes de água fria

Idéias novas
em contas de brilho e cor
presas a um fio
de uma ironia fina
pra exorcizar
mediocridade e rotina

Um manual completo
de lições de abismo
e algum contraveneno
pra poder encarar
em qualquer terreno
os mestres do cinismo

Incluí afinal
como recurso extremo
reserva adicional
de lágrimas sinceras
que a depender do golpe
ou da hora
só sobrevive quem chora



Menezes, Luis Carlos de
Lições do acaso/ Luis Carlos de Menezes
São Paulo: Ateliê Editorial, 2009.

Receitas com liberdade - Luis Carlos de Menezes

Liberdades
mais que conquistas
são receitas para viver

Liberdade é pretexto
para viver com prazer

Liberdade é promessa
para viver com esperança

Liberdade é projeto
para viver com coragem

Liberdade é princípio
para viver com paixão

Liberdade é premissa
para viver com liberdade



Menezes, Luis Carlos
Lições do acaso/ Luis Carlos de Menezes
São Paulo: Ateliê Editorial, 2009

Do mesmo jeito - Luis Carlos de Menezes

Quem lavra outra palavra esquece a frase feita
quem vai buscar o sonho
não leva o conquistado
quem procura outro rumo
não repete caminho

Quem decide manter
o conhecido
o dito
e o feito
já decidiu ficar
do mesmo jeito



Menezes, Luis Carlos de
Lições do acaso/ Luiz Carlos de Menezes
São Paulo: Ateliê Editorial, 2009

Todas as liberdades - Luis Carlos de Menezes

Todas as liberdades
de fato
são só duas

Uma é conhecimento
pra evitar riscos
ao escolher caminhos

Outra é aventura
pra correr riscos
ao descobrir caminhos

Uma é filha da outra



Menezes, Luis Carlos de
Lições do acaso/ Luis Carlos de Menezes
São Paulo: Ateliê Editorial, 2009

sexta-feira, 4 de maio de 2012

Não soltar os cavalos - Clarice Lispector

Como em tudo, no escrever também tenho uma espécie de receio de ir longe demais. Que será isso?
Por que? Retenho-me, como se retivesse as rédeas de um cavalo que poderia galopar e me levar Deus sabe onde. E me guardo. Por que e para que? para o que estou me poupando? Eu já tive clara consciência disso quando uma vez escrevi: "é preciso não ter medo de criar". Por que o medo? Medo de conhecer os limites de minha capacidade? ou medo do aprendiz de feiticeiro que não sabia como parar? Quem sabe, assim como uma mulher que se guarda intocada para dar-se um dia ao amor, talvez eu queria morrer toda inteira para que Deus me tenha toda.


Lispector, Clarice.
Para não esquecer / Clarice Lispector. Licença editorial para o Círculo do Livro por cortesia de Paulo Gurgel Valente. Copyright 1980 by Espólio de Clarice Lispector.

quinta-feira, 3 de maio de 2012

A função da arte/1 - Eduardo Galeano

Diego não conhecia o mar. O pai, Santiago Kovadloff, levou-o para que descobrisse o mar.
Viajaram para o Sul.
Ele, o mar, estava do outro lado das dunas altas, esperando.
Quando o menino e o pai enfim alcançaram aquelas alturas de areia, depois de muito caminhar, o mar estava na frente de seus olhos. E foi tanta a imensidão do mar, e tanto seu fulgor, que o menino ficou mudo de beleza.
E quando finalmente conseguiu falar, tremendo, gaguejando, pediu ao pai:
- Me ajuda a olhar!


Eduardo Galeano